22/06/06

Data

apresento-te a vida: parto do princípio
de que não gostas da sua feia carantonha,
nem dos seus modos ínvios de agir.
Parece-me por vezes que ela se assemelha a
uma história contada por alguém que se esqueceu
do fim e tenta com grande esforço improvisar à medida
que vai contando. Será isto. Podemos, tu e eu,
disfarçar. Esconder por trás do espelho
a fresta por onde entra a sombra;
de noite, quando dormimos na suspensão do tempo,
cremos sonhar enredos distintos dos filmes a que assistimos,
mas quando acordamos tudo se mantém,
o mesmo sol se levanta lá fora,
a luz que mudou sem mudar ou o vento
que regressou acendendo de imediato a imagem
da tempestade antiga – cada lapso de tempo
é apenas a memória de um tempo anterior; quando
me aproximo de ti sabendo de cor o espaço
a que pertences, conheço duas coisas apenas:
a linha de realidade que nos cabe e a sua extensão
para lá do espelho que nos espreita. Por outras palavras,
amar-te é existir em dois tempos simultâneos.
Num, ainda hesito entre oferecer-te um copo mais
ou convidar-te para casa, no outro sou puxado de
volta à terra e mergulho a fundo na experiência
de reconhecer um corpo, sabes: procurar nele
o tecido que envolve a manhã atrasada pela
insónia, cerzir à minha pele a tua – e não quero com esta imagem
equivaler o procedimento a um acto cirúrgico e desapaixonado –
e no fim dormir profundamente e sem sonhos,
a manhã resgatada à nossa porta.

Apresento-te a vida: aceita o seu belo
rosto, não precisas de gramática nem retórica
para a compreenderes. Eu ensino-te.

(Para S.)

[SL]

Sem comentários: