13/06/06

Alecrim e manjerona

O problema não é saber o quanto existe de verdade na ficção. O género autobiográfico consegue mexer-me com os nervos, o confessionalismo deprime-me quando é piegas, detestaria saber que um autor não mente ao escrever a sua entrada no diário ou ao preparar a sua crónica semanal para a imprensa. Porque existe esse risco, não me interessam os diários póstumos ou a correspondência dos escritores. Por isso e por achar que o interesse da vida é sempre curto se comparado com o interesse que a ficção pode motivar. Portanto, o problema não é saber o quanto existe de verdade na ficção, mas sim até que ponto podemos dispensar a realidade no nosso dia-a-dia. Pensava no cliché das máscaras que usamos no contacto social, admito, mas lembro agora uma pista mais interessante: não há nada por baixo, a sério. Conseguimos ter menos substância que Terry em "Há Lodo no Cais", sabem, aquele a quem Marlon Brando empresta o corpo e a voz até que a eternidade acabe. E falo de um homem de celulóide, não esquecer. (Aproveito a deixa para lavrar o meu protesto contra o insulto que foi ler a última crónica de João Pereira Coutinho, em que ele compara Al Pacino a Brando. Será que não viu "O Padrinho"?)
Imaginem: o jogo da sedução, o que é? Toca e foge, cada um tentando dar o melhor de si, o que nem de perto nem de longe corresponde ao que se é na realidade, jogo de mostrar e contar o que se gosta, o que se recorda, o que se vislumbra, julgando esconder durante o máximo de tempo possível a vergonha do pequeno defeito, da mania, do hábito nocivo que apenas se confessa quando se chega ao ponto de viragem essencial de uma vida: a partilha de uma sanita sem nojo. (O mau-gosto da última frase é justo e correcto. Aliás, gostava de ler mais crónicas de jornal com este tipo de linguagem suja, imagino o esforço de auto-censura que atinge a maior parte dos cronistas. E não falo do maradona, ou falo?)
Tudo ficção, uma imagem à espera de ser destruída pela primeira voz levantada, o primeiro olhar lateral na direcção de um rabo-de-saia contíguo, ou pior, a característica transmitida desde tempos imemoriais que está inscrita nos genes masculinos, o esquecimento de uma data importante. Quando a relação chega àquela fase em que perigosamente se assemelha a uma guerra - períodos de violência extrema, sangue, suor e lágrimas entrecortados de visitas ocasionais a Saigão para satisfazer os apetites da carne - onde param as máscaras? Estão todas guardadas no baú do adversário, perdão, companheiro; ofertas sem sentido no conflito a que alguns teimosamente chamam de amor. Quem chega aqui esqueceu-se não só da persona que construiu para o outro, como inclusive esqueceu de quem era originalmente. Lamentável.
Fugi do assunto, eu sei. De que falava eu? Da vida e da ficção. E de como a segunda, apesar de se aproximar de forma perigosa da primeira, consegue ser mais verdadeira na sua mentira. Juro, tudo isto é verdade.

[SL]

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