17/06/06

Tem calma, Sérgio

Gostava de poder dizer que consigo controlar nas calmas o misantropo que habita em mim - mais ou menos na zona do pâncreas - mas, lamento, não é assim. Não quando, a um pedido do novo vizinho, simples e directo, respondo não. "Podia me emprestar um banco para montar...?" "Não, estou cheio de pressa, tenho uma coisa marcada, agora não posso." O homem responde com um olhar que tanto tem de incrédulo como de enraivecido, e não o censuro. No lugar dele, ficava a pensar no cromo que me tinha calhado como vizinho. Não será suficiente para lamentar a escolha da casa (e ficará mais feliz quando descobrir as duas brasileiras do rés-do-chão pavoneando-se à varanda, shortinho apertado, chinelo e algodão entre os dedos dos pés enquanto o verniz seca), mas ainda assim imagino o que não lhe terá passado pela cabeça. Bem, talvez nada de muito complexo ou filosófico, tipo "como anda o mundo, as pessoas estão cada vez mais distantes, o anonimato da vida citadina", a treta suburbano-depressiva do costume, pelo menos se me atrever a um julgamento apriorístico inteiramente baseado na aparência da figura: trinta e poucos, ar atarracado, camisa e gravata cor-de-rosa, vagamente bimbo, vagamente imigrante de regresso à terrinha. Mas posso estar errado, claro, quem sabe se o homem não traz com ele a colecção completa dos álbuns de John Cage ou alguns livros de Séneca em latim ou as tragédias de Ésquilo em grego - como dizia a outra, pode-se ler em grego sem conhecer uma letra que seja do alfabeto clássico, paradoxo brilhante que eu, por muito que leia ao longo da vida, nunca conseguirei abarcar na totalidade. Respondi, então, com um rotundo não. E o homem reentrou em casa a coçar a cabeça e eu desci as escadas a caminho da creche onde o meu filho esperava por mim. Assunto esquecido, assunto remoído depois, quando houve tempo para lembrar o sucedido. Susana, sábia, evoca a figura da mulher de Larry David em "Curb Your Enthusiasm" e dá-me aquele olhar. Espanto e comiseração, aquela cabecinha a pensar nas consequências. Eu, tapado como por vezes pareço ser, não prevejo o futuro. Susana, sim. E o que ela vê não me parece nada animador. Favor que não se faz há-de ser favor não devolvido. Chiça! A misantropia dá nisso. A hora em que, numa situação de aperto, tocar desesperado na campainha do vizinho e ouvir como resposta, sorriso enfeitando sarcasticamente os lábios, um redondo não, um cortante não, um fatal não, dar-me-ei conta da mão insidiosa que o destino utiliza para nos chamar à terra, perceberei que os deuses não brincam em serviço e que a menção que fiz algumas linhas acima à tragédia clássica tem uma razão de ser à posteriori. Não, e então entenderei a magnitude da minha tola recusa. Tenho pena apenas de uma coisa, nesta história: que não haja grandeza no meu gesto. Recusei um banco apenas porque fui apanhado de surpresa. Não soube como responder, balbuciei a primeira baboseira que me queimou a língua. Culpo a educação anti-social que tive, portanto. Aí está, percebo Larry. A antipatia não é uma atitude que se possa cultivar, como a sabedoria ou o encanto; é um acaso, fruto maldito da incrível capacidade de esquecer as regras sociais do ameno convívio. Ou, por outras palavras, não sei, nem nunca saberei, improvisar o humanismo, para mim o ser humano é um animal vagamente desconhecido. Que os deuses percebam isto, eis a minha esperança. Podia ser pior.

[SL]

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