28/06/06

Futebol

Caro Rui,

compreendo o que escreves, entendo os teus argumentos, percebo onde pretendes chegar. Concordo em quase tudo porque não posso discordar de um gosto pessoal. E, para dizer a verdade, também me escapa a razão da euforia patriótica que toma conta do país nestas alturas, principalmente desde o Europeu de há dois anos atrás. Quer dizer, sei porque aconteceu. Como me dizia um brasileiro no outro dia, Scolari conseguiu colocar um povo a amar a bandeira sem vergonha, conseguiu unir uma pátria em torno de um objectivo comum. Tinha de ser um brasileiro, de resto. O futebol é a alma do Brasil, o que melhor espelha as características de um povo. Parte desta identificação étnica foi trazida por Scolari quando fez o apelo às bandeiras há dois anos. Ajudou também o jargão guerreiro, o discurso motivador a funcionar junto dos jogadores e ao mesmo tempo a estender-se ao resto do país, esse eterno animal arrastando o focinho pelo chão, na lama da crise duradoura. Por isso vemos seres humanos absolutamente normais durante o resto do ano, gente que nem olha para a televisão quando dá bola, cidadãos sem clube, maus chefes de família e intelectuais tristes transformarem-se em selvagens, belos e sentimentais, como escreveu Javier Marias, durante o tempo que dura o Mundial. E, cúmulo do cúmulo, as mulheres, de olhar fixo nas pernas dos jogadores a emocionar-se ao lado do namorado, do marido, retirando ao homem a possibilidade de este usufruir de um dos poucos gestos permitidos pelo tabu sexual: o abraço ao companheiro do lado aquando do golo. Elas não percebem nada, é verdade, mas dão beleza a um desporto de brutos - reveja-se o Portugal-Holanda. Para dizer a verdade, os únicos que não conseguem aceitar a onda de alegria são os adeptos ferrenhos dos clubes, portistas à cabeça, os coitados que sofrem com os penosos jogos do campeonato nacional e discutem ad absurdum as minudências de cada jornada; já ouvi dizer, da boca de um benfiquista, que a selecção é nada, discorrendo de seguida sobre a meia equipa encarnada que não foi convocada por Scolari e sobre as razões porque Simão e Petit devem jogar em vez de Costinha e Ronaldo. Não ligo, apesar do meu confesso benfiquismo.
Podemos discutir: não existe uma parolice nesta euforia em torno da selecção? Claro que sim, é como as sardinhas e Fátima e os santos e a javardice dos pedreiros quando passam raparigas nas ruas. Mas existe também um sentimento único de pertença a qualquer coisa que quase sempre parece intangível. Ter orgulho do país onde nascemos, e mesmo sabendo que isto é um facto acidental, ajuda-nos a firmar raizes no mundo. Ninguém quer ser apátrida, como ninguém deseja ficar órfão. Ama-se a pátria como se ama a família a que se pertence: por uma fatalidade e por renúncia à nossa natureza mais profunda - o egoísmo. Aprender a aceitar este amor burro torna-nos seres sociais, mais em paz com todas as contrariedades e incongruências que a vida tem para nos oferecer.
Mas o que isto tudo tem que ver com futebol? Absolutamente nada. Ninguém te pode convencer a gostar do jogo. A estética do desporto, que nada tem a ver com a clubite aguda ou o patriotismo passageiro, é inexplicável. Podia falar aqui do rigor dos passes de Deco, da vertigem das fintas de Ronaldo, da força admirável de Figo enquanto jogador e pessoa, da emoção que é ver Miguel pegar na bola cortando um passe para Robben e desatar a correr por ali fora, como se não houvesse amanhã, em direcção à baliza adversária, e no final, oh, beleza suprema, falhar o golo. Podia descrever cada pormenor que foi estudado antes pelos jogadores a ser aplicado em campo, ou então ver tudo de pernas para o ar, a desordem total, e ainda assim esperar a qualquer momento um sprint de Simão, um drible para o meio, aquele disparo que sempre se espera quando Simão finta para o interior do campo, porque o jogo é caos que nasce da ordem do treinador. E que volta ser ordem apenas na repetição televisiva. Quando tudo corre bem - isto é, quando a nossa equipa ganha - os defeitos e o sofrimento desaparecem do passado, como se nunca tivessem existido. Semelhante à guerra? Supera-a, porque nenhum combate é real, tudo é simbólico, saído da imaginação de quem joga e manda jogar. Perfeito como a Arte. Arte.

[SL]

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