17/07/06

Tomar partido

Concedo que a neutralidade seja difícil. Aceito que a objectividade não passe de uma quimera, permito que a equidistância apenas possa ser um objectivo. Seja. O Público, o melhor jornal português - mesmo depois da última reformulação do DN - não deve nada a ninguém, o seu livro de estilo fala por ele. Muitas vezes acabei por dar razão aos críticos dos críticos de José Manuel Fernandes, e pela mais irónica das razões; todos sabemos o seu posicionamento ideológico, a verdadeira cruzada que tem vindo a travar em nome de uma ideia de progresso e de liberdade; comovemo-nos com ele quando ele se emocionou ao ver a estátua de Saddam derrubada pelos soldados americanos, aceitámos a sua indignação contra os hipócritas de esquerda que se manifestaram aos milhões contra a invasão do Iraque, sorrimos por dentro - de ternura - olhando para ele a pregar no deserto de ideias o bondoso neo-liberalismo que irá trazer o bem-estar económico e a felicidade ao mundo inteiro. Até caímos num enlevo de admiração, bastas vezes, perante o estoicismo com que ele defende os "erros" norte-americanos, desde Guantanamo ("é claro que a situação de Guantanamo não pode continuar, etc.") até Abu Ghraib ("um abuso de uma minoria de insubordinados que ocupam lugares inferiores na hierarquia militar, etc."), passando pelos "desvios" das bombas no seu tortuoso caminho em direcção aos alvos militares que se escondem no meio dos civis indefesos. O homem tem coragem, virtude louvável, não menos que a teimosia - há quem lhe chame coerência - na sua defesa da política norte-americana na construção de uma nova era. O último dos moicanos, apesar das armas de destruição maciça que se volatizaram, do dominó da democracia que se transformou em avalanche do terrorismo, da diferença de tratamento em relação ao Irão e à Coreia da Norte que, convenhamos, estão mesmo a pedir a bota imperial para entrarem nos eixos. A razão porque concordei muitas vezes com José Manuel Fernandes? Pela paródia involuntária, pelo espectáculo que é ver num dia ele a escrever uma crónica louvando as virtudes da guerra e no dia seguinte um dos seus sub-directores demolindo - sem nunca o nomear directamente - o texto escrito pelo chefe. Sou português, e por isso dá-me gozo a insubordinaçãozinha pontual.
A que propósito falo aqui de José Manuel Fernandes? Queria antes escrever sobre o verão, o tempo de férias, as viagens que tanto me motivam nesta altura. Para ser mais exacto, queria escrever sobre as férias do director do Público. Escolheu o sítio mais in do momento, o mais quente do ano. Desde há três dias que nos escreve de um lugar, algures em Israel. Lemos a crónica, escorreita e prazeirenta, e percebemos que estas férias veraneantes foram pagas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. Ainda bem, o homem merece, por serviços prestados com honra e distinção. Se falamos de férias, que goze à grande os frutos do esforço titânico a que se vem submetendo nos últimos anos. Mas esperem. Leio com mais atenção e começo a desconfiar. Não é que as crónicas de viagem não estão onde deviam estar, naquele suplemento da silly season, no qual a socialite discorre sobre tudo e nada de papo para o ar? Não, para dizer a verdade, descobri agora, não começou sequer ainda a ser publicado o supramencionado suplemento, só lá para Agosto, parece-me. Folheio o jornal freneticamente e descubro que as notícias que emolduram as crónicas de viagem de José Manuel Fernandes falam de mortos, feridos, mísseis, bombardeamentos, sofrimento, sangue e lágrimas. Deve ser uma náusea passageira, o que me invade. Releio com mais atenção, desta vez tentando ignorar que a viagem foi paga pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, e continuo, de boca aberta. Regresso à primeira página: "Mísseis do Hezbollah matam civis na cidade mais tolerante de Israel" em letras grandes, destacado. Logo por baixo, em corpo mínimo: "Raides israelitas no Líbano provocam 45 mortos e mais de 100 feridos". A fotografia que acompanha a chamada, trabalhadores israelitas recolhendo restos mortais de vítimas do ataque do grupo libanês. Avanço para a segunda página. Título em letras garrafais (maiores que na capa): "Hezbollah lança o ataque «mais profundo» contra Israel." Busco, já desesperado, os pormenores. Por baixo, confirmo a suspeita: oito mortos israelitas, e repito, 45 civis libaneses também falecidos. Não se especifica se os mortos israelitas são militares ou civis. Pouco importante, de resto. Nesta altura, já nada interessam essas especificidades, tão longe se chegou na demanda.
Será necessário acrescentar mais à descrição feita, ou é suficiente? Pouso o jornal, e descanso com as palavras sábias do douto José Manuel Fernandes. Uma altura decisiva, escreve ele. Para todos nós, penso eu. Agora que finalmente já mandámos às malvas toda a decência e qualidades da democracia - que inclui, imagine-se, um jornalismo essencialmente neutro e objectivo, sem tomar partido, na prática um jornalismo que não seja propaganda pura - podemos finalmente dizer que já possuímos as mesmas armas que os fundamentalistas e terroristas há muito manejam (e deixem-me ser catastrófico e exagerado): a manipulação dos factos, a recusa da moderação, um belicismo feroz e agressor contra quem está do outro lado da barricada. José Manuel Fernandes pode ser acusado de muita coisa. Agora, de ser bom jornalista, ele já se conseguiu livrar. Boas férias.

P.S.: Onde foi escondida a ostracizada Alexandra Lucas Coelho, quase sempre enviada para o Médio Oriente e recém premiada pelas suas reportagens no Público? Ou será que ela própria se escondeu com vergonha?

[SL]

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