12/07/06

Muros e sombras

Razões haverá para que a igreja Católica se continue a preocupar com a sexualidade do seu rebanho, mas não me interessam quais. Por outro lado, talvez me interessem, principalmente as de ordem psicanalítica ou mental. Mas com certeza haverá milhares de páginas escritas em torno do assunto, milhares de artigos, milhões de opiniões. O que me interessa realmente é tentar conhecer a raiz do martírio auto-imposto de Kierkegaard após a recusa do casamento com a prometida de longa data. O que me interessa é a culpa de Kafka e a sublime expiação falhada que foi tentando ao longo de uma vida de permanente sobressalto metafísico. A religião, em ambos, será um pormenor. Será assim: existem categorias, enquadremos o que conhecemos nelas. Kafka e Kierkegaard e Graham Greene e Chesterton deixaram uma obra que é, sobretudo o resultado dos conflitos interiores relacionados com a religião com que cresceram. É claro que a solução de Chesterton foi a mais fácil: abraçou calorosamente o catolicismo e tornou-se um moralista. Salvava-se o cinismo refinado da sua doutrina; a ironia consegue sempre arrefecer os ódios alimentados. Greene aproveitou bem a matéria-prima das suas dúvidas para criar dois ou três grandes livros. Já Kafka e Kierkegaard eram outra história. O que motiva a perplexidade e o permanente questionamento de ambos não são os dogmas da religião em que foram educados, mas sim os fundamentos da própria fé e o modo como a vida humana pode ser afectada por eles. As personagens de Kafka estão presas a um mecanismo infalível de onde não se conseguem libertar, a uma máquina de culpa que reprime duramente qualquer desejo que possa despontar. Máquina contra o humano, ou, se quisermos, consciente contra inconsciente. O desassossego é interior, a tensão é interna, como acontece também em Kierkegaard. O espinho que não consegue arrancar, a dúvida que o atormenta. Mas que continua a não desfazer nunca. A Natureza humana.
O que tem isto a ver com Bento XVI e as pequenas obsessões fetichistas da igreja Católica? Igreja rasa, rasteira, muito pobre, a que esquece a transcendência da Fé e se preocupa com as mundanas partes baixas dos seus crentes.

[SL]

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