O modo russo de filmar a estepe contradiz de forma violenta as minhas ideias feitas sobre solidão e deserto. Há o caos desolador de Andrei Tarkovsky, ou a beleza rigorosa de Alexander Sokurov, e há também o meteorito que foi O Regresso, de Andrei Zvyagintsev. O mesmo cuidado em cada plano, em cada enquadramento, que os mestres que o precederam, mas um saber-fazer que não enjeita influências mais profanas na composição do filme. Há muito de Hitchcock na tensão que se vai acumulando, do mesmo modo que os céus de chumbo que ameaçam desabar a qualquer momento se vão adensando. E acontecem, várias vezes, movimentos em falso que redundam em nada e que, deste modo, acrescentam ainda mais nervo ao fio narrativo. O minimalismo trata cada cena como um todo, mas sem abusar da preguiça contemplativa que se podia esperar de um filme com apenas três personagens durante a maior parte do tempo. Os problemas que o argumento coloca - por um lado o desejo de filmar com um olhar certeiro as paisagens intensas da estepe russa, por outro a história do pai que regressa e leva os dois filhos (composições notáveis de ambos os actores) a uma viagem que desde o início prevemos trágica - são geridos eficazmente. Convivem sem problemas o macguffin hitchcockiano (a caixa desenterrada na ilha) e a perfeita composição das cenas, evocando pintores e a iconologia cristã - logo ao início, Andrea Mantegna e a descida de Cristo, a Última Ceia, mais para a frente a religiosidade profana do classicismo - Dante e a sua Divina Comédia, o transporte pelo barqueiro das duas crianças atravessando o rio do esquecimento. O fim da infância chega de modo brutal e sem remédio. A ausência do pai, que não permitiu a resolução do problema edipiano de forma simbólica e portanto inocente, vai redundar numa interpretação literal do tema da tragédia clássica de Sófocles. Os indícios estão lá, desde o início, premonições em forma de imagem imitando a tradição cristã, tão cara a Zvyagintsev, como aliás tinha sido em tempos a Tarkovski.
O azul que se apodera das imagens cria uma película entre a Natureza e o espectador, provocando um desconforto crescente que tem o seu auge quando a previsível tragédia finalmente acontece, não exactamente como esperávamos. Ritual de passagem simbólico e solitário, distante dos segredos do mundo dos adultos a que Ivan, o filho mais novo, não consegue aceder. Fôlego impressionante, fundamental.
[SL]
O azul que se apodera das imagens cria uma película entre a Natureza e o espectador, provocando um desconforto crescente que tem o seu auge quando a previsível tragédia finalmente acontece, não exactamente como esperávamos. Ritual de passagem simbólico e solitário, distante dos segredos do mundo dos adultos a que Ivan, o filho mais novo, não consegue aceder. Fôlego impressionante, fundamental.
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