Há seis anos atrás, também em Junho ou Julho - do dia certo não me quero recordar - a selecção portuguesa foi eliminada pela França nas meias-finais do Campeonato da Europa. Todos conhecem a história; o golaço de Nuno Gomes, a pressão da França, o golo de Thierry Henry e o penalti desnecessário de Abel Xavier. Eu encontrava-me no sítio certo para este tipo de actividades: numa tasca, mesas de fórmica cobertas de uma camada fina de sebo, um cheiro a fritos e a cerveja pairando no ar, empregados de avental sujo e palito nos dentes olhando para o televisor de pequenas dimensões ao fundo da sala. Desde o início da manhã que a tensão dos grandes jogos vinha crescendo, um nervoso miudinho que se tem por hábito comparar ao estado de espírito dos jogadores quando entram em campo; é sempre pior para quem está de fora. No relvado, tudo se diluí na intensidade do esforço. A camada acumulada de nervos adensou-se durante o jogo e culiminou de forma irracional quando o improvável futebolista Avô Cantigas tocou na bola com a mão. Quando dei por mim - e nunca esta expressão fez tanto sentido - estava aos saltos no meio da sala, gritando em direcção a um ecrã que mostrava acontecimentos a milhares de quilómetros de distância. Depois, lembro-me de achar que, se pudesse entrar em campo, saltaria em direcção ao fiscal-de-linha que assinalou a falta e deixaria à solta os demónios que tão discretamente tinham crescido dentro de mim, homúnculos alimentados pelos últimos vestígios deixados pelo cérebro reptilíneo que fomos esquecendo ao longo de milhões de anos de evolução. Esbracejava, sei-o bem, em direcção a sombras reflectidas no ecrã que simulava uma realidade simbólica, um exorcismo virtual dos demónios que me perseguiam. Racionalizei depois este instinto básico. Tão débil era a racionalização como o sentimento em si. Depois, tudo passou e, maravilha das maravilhas, achei que o árbitro-assistente acertara.
Seis anos depois, o jogo contra a mesma equipa, um abismo separando os dois acontecimentos. Calmamente assisti ao anunciado descalabro. Ou nem isso. Nem descalabro foi. Apenas uma derrota no futebol. Enquanto olhava para o televisor, cada jogada se tornava apenas uma soma de movimentos, desmarcações, linhas que surgiam e desapareciam acompanhando o percurso da bola de pé para pé, o total dos noventa e quatro minutos um diagrama polvilhado de pontos e vestígios de trajectórias, uma radiografia imaginária - que incluía presente e passado em simultâneo - de uma batalha ritualizada. Toque de génio? Quero pensar que a criatividade que não permite adivinhar o próximo movimento da bola ou do jogador seja apenas uma diferença num jogo de repetição e expectativa. A estatística reproduz os resultados possíveis mas não prevê o sucedido no final. Mas se nos afastarmos e visualizarmos o quadro geral, apercebemo-nos de que tudo estava escrito à partida. O que mudou, então? A minha percepção desta fatalidade. Há seis anos atrás, acreditava na possibilidade do caos. A aleatoriedade não era apenas um pressentimento. Era uma certeza trazida pelo génio de jogadores como Zidane ou Figo, ou Henry. Por outras palavras, achava que havia uma razão para me entusiasmar com a incerteza dos resultados. Um crença cega na imprevisibilidade das jogadas, sem que uma geometria traçada a régua e esquadro pudesse influenciar o desenrolar das partidas.
O que me leva à pergunta que se coloca, inevitavelmente: quem mudou, eu ou o jogo, a minha memória dele? A retórica nem chega a ser irónica, mas permito-me descansar sobre uma certeza: desde o nascimento até à morte, existe apenas um acumular de expectativas frustradas. Um descanso, porque sei com que contar daqui para a frente. Quem diz que o futebol é apenas um jogo não conhece o rosto da vida; mas os gregos sabiam muito o que faziam quando criaram o teatro e a sua face dupla. Nada mudou ao longo destes milénios de aprendizagem. Em seis anos, tudo se transformou.
[SL]
Seis anos depois, o jogo contra a mesma equipa, um abismo separando os dois acontecimentos. Calmamente assisti ao anunciado descalabro. Ou nem isso. Nem descalabro foi. Apenas uma derrota no futebol. Enquanto olhava para o televisor, cada jogada se tornava apenas uma soma de movimentos, desmarcações, linhas que surgiam e desapareciam acompanhando o percurso da bola de pé para pé, o total dos noventa e quatro minutos um diagrama polvilhado de pontos e vestígios de trajectórias, uma radiografia imaginária - que incluía presente e passado em simultâneo - de uma batalha ritualizada. Toque de génio? Quero pensar que a criatividade que não permite adivinhar o próximo movimento da bola ou do jogador seja apenas uma diferença num jogo de repetição e expectativa. A estatística reproduz os resultados possíveis mas não prevê o sucedido no final. Mas se nos afastarmos e visualizarmos o quadro geral, apercebemo-nos de que tudo estava escrito à partida. O que mudou, então? A minha percepção desta fatalidade. Há seis anos atrás, acreditava na possibilidade do caos. A aleatoriedade não era apenas um pressentimento. Era uma certeza trazida pelo génio de jogadores como Zidane ou Figo, ou Henry. Por outras palavras, achava que havia uma razão para me entusiasmar com a incerteza dos resultados. Um crença cega na imprevisibilidade das jogadas, sem que uma geometria traçada a régua e esquadro pudesse influenciar o desenrolar das partidas.
O que me leva à pergunta que se coloca, inevitavelmente: quem mudou, eu ou o jogo, a minha memória dele? A retórica nem chega a ser irónica, mas permito-me descansar sobre uma certeza: desde o nascimento até à morte, existe apenas um acumular de expectativas frustradas. Um descanso, porque sei com que contar daqui para a frente. Quem diz que o futebol é apenas um jogo não conhece o rosto da vida; mas os gregos sabiam muito o que faziam quando criaram o teatro e a sua face dupla. Nada mudou ao longo destes milénios de aprendizagem. Em seis anos, tudo se transformou.
[SL]
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