18/05/06

Objectos

Quando comecei a visitar a feira da ladra, descobri um mundo novo, até aí desconhecido para mim; o mundo dos objectos que nunca morrem. Aos sábados de manhã, percorria o local em busca de um ou outro disco mais barato do que nas lojas, ou então comprava roupa nova ou em segunda mão, sou capaz ainda de ter guardado alguma peça adquirida lá. Apesar de nunca procurar nada em especial, acabava por perder algum tempo olhando para os objectos velhos expostos em simples panos colocados no chão, tentando ignorar o trajecto que tinham percorrido até chegarem às mãos dos vendedores. Alguns ocasionais, putos tentando ganhar um dinheirinho extra ou toxicodepedentes procurando desfazer-se das pratas baças roubadas da casa de pais ou avós, outros profissionais, com lugar mais ou menos marcado e confirmado todos os dias de feira às cinco da manhã. Sabia de onde provinham as mercadorias traficadas pelos profissionais da feira; conhecia um deles por interposta pessoa. Esperavam ofertas de familiares, compravam barato a vizinhos ou a pessoas em dificuldades, vasculhavam no lixo de gente sem pudor na decisão de deitar fora o que antes teve algum valor. Não passo pela feira há anos, mas imagino que a fauna que visita o local não tenha mudado muito, assim como a oferta ao dispor de quem lá vai. Os objectos continuam a viver naquele microcosmos onde o passado pode ser negociado pela oferta mais alta; os mortos a quem pertenciam em tempos as coisas negociadas não podem evitar que outras mãos toquem espelhos, pentes, máquinas de costura, óculos, cadeiras, roupa amarela e bafienta, colecções de cromos e postais a sépia com nomes na parte de trás, cartas resgatadas à intimidade da vida familiar. Um coleccionador sabe do que falo; parte do prazer que se retira do acto de coleccionar vem do reconhecimento do passado que vive em cada objecto coleccionado. Um selo antigo traz consigo uma história, uma corrente que liga todos os antigos proprietários. Mas um selo não tem, nunca chegou a ter, vida. Um postal escrito, com nomes e moradas, tem. Um pente, ou um espelho, também. O tempo que estes objectos em segunda-mão arrastam seria razão suficiente para que ninguém ousasse voltar a ser dono de tal coisa. Porém, há quem continue a coleccioná-los, a cada troca insuflando neles um sopro de vida mínimo. Partículas que se colam à matéria, invisíveis a olho nu, átomos sensíveis que apenas se revelam quando se coloca em marcha a máquina da memória. A centelha deixada por todos os dedos que alguma vez tocaram os objectos.

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