25/05/06

O modelo

César, aspirante a escritor, apanhou naquele dia uma enchente na secção dos modelos. Detectou ao longe a multidão, enquanto passava pela promoção do dia, mesmo em frente à banca dos legumes. Desanimou um pouco, contudo não o suficiente para dar meia-volta e volver, apêndice espinal metido entre as pernas. "Coragem", pensou, neste caso entre aspas, "se não for hoje nunca mais começas aquilo", e seria verdade, tinha a agenda atafulhada durante pelo menos um mês, era uma oportunidade única. Controlou os nervos aspirando o ar em volta, enchendo o peito de forma resoluta. Sem dar por isso, quase deitou ao chão uma grávida que procurava preservativos nas prateleiras erradas, e porque não viu a expressão de fúria que nasceu na cara da mulher, acabou também por lhe escapar o ar horrorizado de um homem de meia-idade (são sempre homens de meia-idade) ao perceber que tipo de artigo a mulher procurava. Chegou por fim à secção dos modelos, encontrando uma densa barreira de corpos e cabeças rodeando o desejado produto. Se pudessem espreitar o enfado que lhe enfeitou o rosto veriam as pequenas rugas ao canto dos olhos, habituais nele, principalmente quando alguma contrariedade surgia. Nem sempre conseguia utilizar de forma sábia o dom da invisibilidade que um professor em tempos lhe tinha augurado num tom jocoso, mas acontece que naquela altura conseguiu activar o interruptor secreto, que para o caso se situava nas costas, mesmo por cima do rim direito, a dez centímetros da coluna, o que tinha obrigado a um esforço agravado do seu braço esquerdo. Invisível portanto aos olhos de todos, ele foi tentando furar por entre o maralhal empurrando e beliscando, puxando e soprando e bufando, agachado ou saltando, pisando pés e dando ombradas, sem contemplações ou angústias. Ao fundo, lá estava o prémio. Ele sabia ao que vinha, e assim que olhou para o modelo reconheceu nas suas linhas o ideal que há tanto perseguia. Era aquele, não podia ser outro. O rigor das feições, o corpo bem proporcionado, a elegância das roupas, o toque de classe do cachimbo pendente dos lábios, o carácter afirmativo dos óculos de massa pretos, o apontamento final da boina encimando o cocuruto careca da cabeça, tudo se encaixava de modo, senão justo, pelo menos imperfeitamente certo. Isso, assim mesmo. Todas as imperfeições do modelo se enquadravam nos planos de meses. Levaria o artigo para casa, sem olhar sequer para o preço. Dirigiu-se à prateleira, retirou-o com cuidado e colocou-o debaixo do braço. Nem notou o peso excessivo, as gotas de suor que lhe perlavam a pele quando chegou à caixa. "Cartão ou numerário?", perguntou a proletária moça, mascando pastilha. "Ah, American Express, por favor." Vinte segundos depois, o modelo era seu. Podia chegar a casa, correr as cortinas, deixar o dia entrar, sentar-se ao computador e desatar a escrever como se não houvesse amanhã, o seu modelo bem paradinho ao lado da cadeira reclinável, de ar sério e bem-posto, pronto para qualquer sugestão, oferta de estilo, consulta de vócabulos; era aquele e não outro que iria servir de guia metódico na tarefa espinhosa que tinha em mãos. Podia ser agora, verdadeiramente, um escritor.

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