30/05/06

Fé e Razão

A maior parte dos ateus que conheço continua a tratar o Papa por Ratzinger, negando-lhe o nome que escolheu na sua missão de incubência divina. Uma atitude de óbvio despeito, de desvalorização da importância do seu actual papel em relação ao anterior, infinitamente mais exposto à crítica, de responsável pela ortodoxia da Igreja. Diferenciam-no também de João Paulo II, mas não posso afirmar com exactidão se o fenómeno aconteceu nos primeiros tempos depois da transformação de Karol Wojtyla em João Paulo II; acredito que não tenha sido assim. A sua nomeação foi uma surpresa, não era um cardeal mediático como o alemão, e a Igreja precisava de esquecer o curto pontificado de João Paulo I, nos dias de hoje ainda envolto numa nuvem conspirativa de origem difusa. Com Ratzinger, persiste no entanto o desprezo de uns e, mais sintomático, a desconfiança de outros, nomeadamente dos crentes mais progressistas. A verdade é que Bento XVI é um Papa diferente. Oriundo de um meio académico, respeitado teólogo que partiu de uma posição liberal em relação ao Concílio Vaticano II até desembocar em teses mais conservadores na defesa da fé católica, acaba por não agradar nem ao mundo laico, que esperava reformas profundas - por que razão, não sei, a César o que é de César, a Deus... já se sabe - nem à grande massa católica, que ainda não compreendeu muito bem a complexidade do pensamento do Sumo Pontífice. De que modo será recebido por exemplo o discurso de Bento XVI em Auschwitz-Birkenau, até hoje a mais produnda retractação do pecado alemão e ao mesmo tempo católico por parte do mais alto representante do Vaticano? Lamento, mas o povo nem se apercebeu da revolução implícita nas palavras de Bento XVI, e não espero que as beatas do costume (em Portugal, João César das Neves e afins) teçam loas à lucidez demonstrada. Assumir a dúvida, no fundo foi o que Bento XIV fez. O guardião máximo do dogma católico questionou a presença de Deus no mundo, ou melhor, a sua ausência durante o Holocausto. Assombrou-se perante o silêncio. Uma mínima revolução ou um pequeno lapso discursivo? Esta segunda hipótese não me parece possível, conhecendo o rigor do pensamento de Ratzinger, a sua geometria precisa no traçar do caminho para a Igreja. Ele sabe que não pode ceder às heresias que pretendem mudar a orgânica funcional da instituição. Se isso acontecesse, ruiria por completo o já frágil edifício que tem vindo a ser erguido desde a Contra-Reforma. Mas pode-se permitir uma subtileza conceptual que permita que sejam dados pequenos passos no sentido de uma religião que seja mais humana e, simultaneamente, mais racional, se é que isso é possível, esvaziando a importância do legado populista de João Paulo II, campeão das massas. Se quisermos, a Igreja de Bento XVI é mais elitista, rege-se por um catecismo fundamentado e pensado, mas sem abdicar de nenhum dos pilares que sustentam a instituição. A única via possível, mesmo admitindo uma falha na solidez irracional que a Fé representa. Tentando a (inconciliável) união entre Fé e Razão, quinhentos anos depois da Reforma. E isto não é tarefa fácil.

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