28/05/06

Máquina e memória

Aprendemos a confiar na passagem do tempo e na consequente fixação da memória; sabíamos que o presente apenas se poderia repetir como imagem da memória, e mesmo quando inventámos instrumentos que ajudavam à preservação do passado (livros, desenhos, máquinas) havia sempre um limite que impedia a repetição do acontecimento: o limite que transformava o momento do passado em outra coisa qualquer. Olhar para uma fotografia não era ritualizar o passado; era apenas produzir no presente um acontecimento que substituía o verdadeiro, que passava a existir no lugar da inalcançável realidade. Desconfio que o processo de crescimento pressupõe esta perda irreparável. Ao tornarmos o passado simultâneo ao presente que passa, associamos os dois tempos de forma definitiva, tornamos o passado um rito natural ao ser no presente. Mas o paradigma está a mudar. A infância pode ser empacotada e vendida nas grandes superfícies. Recuamos no tempo recorrendo ao mais básico dos artifìcios: a simulação da realidade, que substitui a ritualização do passado que até aqui acontecia. Séries, jogos, música. A acessibilidade destes objectos sacralizados pela poderosa máquina consumista consegue criar em nós a ilusão da momentânea felicidade. Esta felicidade, pelo cansaço, pela repetição, entranha-se e dilui-se, e a cada novidade rejubilamos menos, extinguimos em nós o desejo e substituímo-lo por uma vontade apenas funcional e vazia de sentido. O rigor do pessimismo das velhas gerações esquece-se porém do óbvio: a mudança não significa degradação, nunca significou, cada geração deve usufruir da felicidade que merece. Se a nossa é breve e extática, rápida e facilmente esquecida, é porque nos munimos das ferramentas que substituem a função da memória. Não lembramos, é verdade. Criámos máquinas que o fazem por nós.

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