26/10/07

O gato, a corrente e o livro

Curiosamente, disse o gato, não estou aqui por acaso. Curiosamente, o sentido que encontro no acaso de aqui estar fez-se de uma coincidência, mas aqui cheguei, portanto a coincidência tem sentido. Não há limites para a combinação de elementos. O sentido surge sempre depois, depois da combinação se dar, de acontecer. As palavras são limitadas. As possibilidades de se combinarem, infinitas. Não há qualquer vestígio de esoterismo neste estado de coisas.
O gato disse: a curiosidade fez-me abrir ao acaso a página 161 do livro mais próximo (qual o simbolismo cabalístico deste número?). Curiosamente, terei lido o conto que folheio enganado. Fui levado ao engano. Eu explico: julgava ler um conto de Iris Murdoch (reconheci-lhe erroneamente o estilo, talvez por pouco conhecer de Murdoch; bom, não o suficiente); estava gostando do ritmo sensivelmente feminino (acredito na literatura feminina; acredito na diferença entre a mão masculina que segura a caneta e a mão feminina que a conduz; triste é a mulher que não se orgulhe desta diferença); da evocação/homenagem a Virginia Woolf e à sua Mrs Dalloway; da citação directa do ensaio Um Quarto Que Seja Seu: uma mulher que aluga um quarto para fugir à rotina familiar, marido e filhos, à modorra burguesa de um subúrbio londrino; as subtilezas de alma que (desconfiei cedo) conduziam lentamente ao deslizar para a loucura (mas a previsibilidade era uma coisa boa, confortável; doméstica). Julgava ler um conto de Iris Murdoch. Lia com prazer um conto que julgava ser de Iris Murdoch. Voltei atrás, à tábua das matérias, para me certificar da precisão bio e bibliográfica. Identifiquei o logro. O logro em que me enredei (mas já tinha sido capturado). Uma história bem contada é uma teia - e haverá coisa mais feminil que uma aranha? Não lia Iris Murdoch. Antes Doris Lessing. Doris Lessing? Teria lido alguma coisa antes? Talvez, mas esquecera ao certo que livro. Pouco importante. Regressei ao rio, deixei-me levar na corrente, cheguei ao fim e confirmei as minhas suspeitas. Voltei ao local do crime, por acaso, impelido por um desafio do João Ventura. O livro à minha esquerda era Modern British Short Stories, que retirara da prateleira no outro dia, ao escrever um texto sobre Doris Lessing para o blogue. A página 161 era uma das páginas do conto, o maldito conto, To Room Nineteen. O gato diz: há acasos? Que se prove com a transcrição da frase nº 5, a cores, devidamente enquadrada pelo antes e o depois:

She said to Mathew in their bedroom: "I think there must be something wrong with me."
And he said: "Surely not, Susan? You look marvellous - you're as lovely as ever."
She looked at the handsome blond man, with his clear, intelligent, blue-eyed face, and thought: Why is it I can't tell him? Why not? And she said: "I need to be alone more than I am."

Não há passagem que melhor defina o ambiente do conto. E, para todos os efeitos, a alma feminina. A nova alma feminina, usufruindo do esplendor de um tempo, de um quarto para ficar sozinha. O gato diz: haverá sentido em toda esta sequência de simultaneidades entre vida interior e exterior, entre realidade e ficção, entre coisa escrita e coisa acontecida? Ou a minha curiosidade acabará por não ser satisfeita?

(Entretanto, passo o meme a cinco bloggers. Não esquecer: o primeiro livro que estiver à mão. A página 161. A quinta frase completa. Bom proveito tenham o André Moura e Cunha, a Miss Allen, a Ana de Amsterdam, o Luís Carlos Silva e o Tiago Galvão. E eu sei quem não vai continuar a corrente. Estão debaixo de olho.)

[Sérgio Lavos]

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