31/10/07

5 letras, 5 filmes

Ora bem, cinco filmes da minha vida, caro Solvstag? Um clássico, que já deve ter dado a volta ao mundo dos blogues centenas de vezes. Como até ando bem disposto, vou acrescentar alguma dificuldade à corrente. E que tal cinco filmes começados pelas letras do meu apelido, em inglês? Portanto um filme começado por L:

Lost Highway, de David Lynch - não é o meu preferido dele, mas Lavos não contém um M. Se Tivesse de dizer apenas uma razão para estar nesta lista, é o facto de, passados 10 anos, muitos visionamentos e alguns textos teóricos depois, ainda não ter entendido a totalidade do filme. Há pistas, claro, e quase que percebo por que razão o Mistery Man aparece em dois lugares ao mesmo tempo. Não é isso o mais importante, de resto. A ideia dos duplos estabelecendo pontos de contacto entre tempos e camadas de consciência é apenas um pretexto. Acima de tudo, a elegante esquizofrenia do desejo masculino. Soberbo.

Apocalypse Now, de Francis Ford Copolla: o melhor do bando à parte do cinema americano dos anos 70 (com milhas de avanço em relação a Scorcese) realizou aquele será, durante os séculos vindouros, o melhor filme de guerra de sempre (logo assim, à distância). E o problema para a concorrência é que o filme nem sequer é de guerra - majestática ópera sobre a natureza humana (as Valquírias não estão lá por acaso).

Vertigo, de Alfred Hitchcock: cada mulher sublima-se e perde a sua individualidade, na cabeça de um homem. Na cabeça de um homem, todas as mulheres são uma mulher só. E cada mulher repete-se em cada nova mulher que se ama. Misoginia? Uma condenação, uma miserável deficiência ditada pelo gene Y que partilhamos. E Madeleine/Kim Novak (a Scarlett Johansson de Hitchcock) sabe tudo, desde o início. Trágico destino da inferior raça masculina, o engano.

On The Waterfront, de Elia Kazan: podia ter aqui a primeira parte do Padrinho, só para falar da cena da morte de Don Vito Corleone e da improvisação do outro mundo de Marlon Brando. Mas como tem de ser um filme começado por "O" (e podia ser também "On Connait la Chanson" ou "One Flew Over the Cuckoo's Nest"), falo do gingar e do rodopiar do estivador Brando em volta da loura pálida Eva Marie-Saint, na rua, a caminho da imortalidade. Assentemos nisto: James Dean era um menino chorão que deitou fora cedo de mais o pouco talento que tinha. Marlon Brando era grande. Enorme. Maior do que alguma vez o seu ego aguentou - e sempre sem fazer caso disso, em esforço. O Maradona da representação.


Some Like it Hot, de Billy Wilder: já vi vezes suficentes este filme para conhecer todas as cenas de cor e ter deixado de lhes achar piada. Mas isso não aconteceu ainda. A melhor comédia de sempre (para alguns - eu diria que está a par de "Monty Python e o Cálice Sagrado") continua tão eficaz como da primeira vez. E claro, Marilyn Monroe mostra que consegue mais do que ser, simplesmente, o arquétipo da espécie. Sabe representar. Gozar com a imagem que o mundo tem de si. A mão de Wilder seria certeira mais vezes; mas nunca com o estado de graça deste filme. Há alguns que conseguem ser perfeitos.

Passo o desafio ao Pedro Mexia, ao Luís Miguel Oliveira, ao Alexandre Andrade, ao Ivan Nunes e ao João Lopes, porque são eles quem melhor escreve sobre cinema na blogosfera e também porque, por esta mesma razão, não se vão dar ao trabalho de continuar a corrente. Sete anos seguidos de maus filmes, é o que dizem. Azar.

(Reparo que Brando aparece duas vezes; aparecem duas louras de Hitchcock; uma loura/morena que emula as mulheres de Hitchcock; e o ideal de beleza feminina, a falsa loura Norma Jean. Que padrão é este que detecto?)


[Sérgio Lavos]

28/10/07

Os amores de Buster Keaton em Paris


As canções de Paris são, para Christophe Honoré, canções de amor: do amor simples dos casados, ao amor partilhado a três, ao amor homossexual, passando pelo amor fraternal. Elas conduzem o filme, revelam segredos e expõem a intimidade de Ismaël Bénoliel (Louis Garrel) e restantes companheiros musicais. Mas este Louis Garrel, que ouvi dizer, tem semelhanças interpretativas com Jean-Pierre Léaud [o mais certo é serem referências ao próprio cinema francês] afirmando-se mesmo o paralelismo entre a relação de Honoré e Garrel com a de Jean-Pierre Láud com François Truffaut, mais parece uma versão francesa-musical-gay de Buster Keaton. Houvesse a possibilidade de Keaton se apaixonar em Paris e ele poderia ser Ismaël. Louis Garrel tem o olhar triste, a boca sisuda, o andar feminino que caracterizam a fisionomia de Keaton, não esquecendo a magnífica capacidade pantomima deste. Esta semelhança é visível, não só nas sequências mais divertidas de As canções de amor (quando Louis Garrel nos conduz a um ambiente de espectáculo caseiro que até parece estar fora do registo das filmagens do filme), sequências dignas do cinema mudo de Keaton onde a seriedade facial contradiz com o burlesco dos gestos, como também na corporalidade do actor, gestos efeminados e esquivos fugindo à constante solicitação sexual. Christophe Honoré, a meu ver, destaca-se mais na narrativa, no desenvolvimento sempre inesperado e, por isso, fugindo aos clichés do romance contemporâneo, dos amores loucos de Ismaël, Julie, Alice e Gwendal, do que na linguagem cinematográfica. Nem sempre os recursos cinematográficos são os melhores. Alguns planos não têm o melhor enquadramento e, por isso, não se sucedem harmoniosamente, a profundidade nas cenas nocturnas também é inexistente, bem como um aspecto curioso: as pessoas olham e enfrentam a câmara e os actores nas filmagens de rua. As canções de amor é um filme que se alimenta da sombra de imagens icónicas do cinema francês mas que vale a pena pelas intensidade eróticas que percorrem Garrel.

[Susana Viegas]

27/10/07

A realidade

Durante muitos anos, deitei-me cedo. E, antes de adormecer, lia. Velho hábito, que fui perdendo com os anos, à medida que as horas de sono se foram encurtando, que o cansaço diário se foi fazendo sentir de forma mais intensa. Actualmente, ao fim de algum tempo, caio no sono. Abro o livro, reclinado, mudo de posição várias vezes, a leitura ganha corpo, os olhos vão pesando sobre as letras, a consciência desliza lentamente em direcção aos doces braços do sono - que não recuso, nunca recusei. Nessa dimensão aprendo quase sempre mais do que nesta; os sonhos são a verdade que recusamos ver enquanto acordados.
Por vezes, cruzava as noites a ler; acontecia quase sempre com policiais, o género dos anos de aprendizagem. Os primeiros livros que lemos têm de ter aquele gancho, o querer saber quem matou. Quando nos habituamos a outros géneros, o gancho ganha outras formas, mas continua presente. É difícil entrar num livro que nos deixe completamente perdidos, sem farol a indicar o caminho; no entanto, com o tempo resistimos com mais força a essa necessidade. Avançamos às escuras, e por vezes julgamos, no coração da floresta, que o autor nos abandona, sem um propósito aparente - a melhor literatura dos últimos cem anos vive deste artifício. Por que razão Joseph K. é perseguido? O que leva o estrangeiro a matar o homem na praia? O suspense prolonga-se para lá da última linha - e a eterna promessa do policial, a de que no fim tudo será desvendado, fica por cumprir, ou, de outro modo, é deixada nas mãos do leitor. Os livros sem solução são aqueles que oferecem mais respostas - mas nunca certezas. Haverá algo que se aproxime tanto da substância essencial da existência humana?

(Texto inicialmente publicado no Arte de Ler)

[Sérgio Lavos]

26/10/07

O gato, a corrente e o livro

Curiosamente, disse o gato, não estou aqui por acaso. Curiosamente, o sentido que encontro no acaso de aqui estar fez-se de uma coincidência, mas aqui cheguei, portanto a coincidência tem sentido. Não há limites para a combinação de elementos. O sentido surge sempre depois, depois da combinação se dar, de acontecer. As palavras são limitadas. As possibilidades de se combinarem, infinitas. Não há qualquer vestígio de esoterismo neste estado de coisas.
O gato disse: a curiosidade fez-me abrir ao acaso a página 161 do livro mais próximo (qual o simbolismo cabalístico deste número?). Curiosamente, terei lido o conto que folheio enganado. Fui levado ao engano. Eu explico: julgava ler um conto de Iris Murdoch (reconheci-lhe erroneamente o estilo, talvez por pouco conhecer de Murdoch; bom, não o suficiente); estava gostando do ritmo sensivelmente feminino (acredito na literatura feminina; acredito na diferença entre a mão masculina que segura a caneta e a mão feminina que a conduz; triste é a mulher que não se orgulhe desta diferença); da evocação/homenagem a Virginia Woolf e à sua Mrs Dalloway; da citação directa do ensaio Um Quarto Que Seja Seu: uma mulher que aluga um quarto para fugir à rotina familiar, marido e filhos, à modorra burguesa de um subúrbio londrino; as subtilezas de alma que (desconfiei cedo) conduziam lentamente ao deslizar para a loucura (mas a previsibilidade era uma coisa boa, confortável; doméstica). Julgava ler um conto de Iris Murdoch. Lia com prazer um conto que julgava ser de Iris Murdoch. Voltei atrás, à tábua das matérias, para me certificar da precisão bio e bibliográfica. Identifiquei o logro. O logro em que me enredei (mas já tinha sido capturado). Uma história bem contada é uma teia - e haverá coisa mais feminil que uma aranha? Não lia Iris Murdoch. Antes Doris Lessing. Doris Lessing? Teria lido alguma coisa antes? Talvez, mas esquecera ao certo que livro. Pouco importante. Regressei ao rio, deixei-me levar na corrente, cheguei ao fim e confirmei as minhas suspeitas. Voltei ao local do crime, por acaso, impelido por um desafio do João Ventura. O livro à minha esquerda era Modern British Short Stories, que retirara da prateleira no outro dia, ao escrever um texto sobre Doris Lessing para o blogue. A página 161 era uma das páginas do conto, o maldito conto, To Room Nineteen. O gato diz: há acasos? Que se prove com a transcrição da frase nº 5, a cores, devidamente enquadrada pelo antes e o depois:

She said to Mathew in their bedroom: "I think there must be something wrong with me."
And he said: "Surely not, Susan? You look marvellous - you're as lovely as ever."
She looked at the handsome blond man, with his clear, intelligent, blue-eyed face, and thought: Why is it I can't tell him? Why not? And she said: "I need to be alone more than I am."

Não há passagem que melhor defina o ambiente do conto. E, para todos os efeitos, a alma feminina. A nova alma feminina, usufruindo do esplendor de um tempo, de um quarto para ficar sozinha. O gato diz: haverá sentido em toda esta sequência de simultaneidades entre vida interior e exterior, entre realidade e ficção, entre coisa escrita e coisa acontecida? Ou a minha curiosidade acabará por não ser satisfeita?

(Entretanto, passo o meme a cinco bloggers. Não esquecer: o primeiro livro que estiver à mão. A página 161. A quinta frase completa. Bom proveito tenham o André Moura e Cunha, a Miss Allen, a Ana de Amsterdam, o Luís Carlos Silva e o Tiago Galvão. E eu sei quem não vai continuar a corrente. Estão debaixo de olho.)

[Sérgio Lavos]

24/10/07

MACE



Um recente passeio pelo norte do Alentejo levou-nos a Elvas guiados pela curiosidade em ver a colecção de António Cachola no MACE que desde Maio ocupa o espaço da Misericórdia de Elvas. Depressa a vontade esmoreceu: ao contrário do que indicava o site do museu, a exposição encerrava às 18h e não às 20h, contratempo que nos permitia cerca de 1 minuto para circularmos pelas salas. Explicada a obtenção de informação desactualizada no site (era Domingo e a alteração vinha de 4ª feira...) e graças à boa vontade dos funcionários, foi possível fazer uma visita relâmpago à exposição. Olhando para o conjunto de artistas, reparo que metade estão ausentes, talvez emprestados a outros museus ou exposições, talvez guardados à espera da sua vez.

Fez-se notar a ausência de algumas obras, nomeadamente, A Noiva, de Joana Vasconcelos, que rumara para Nova Iorque. No entanto, era forte a sua ausência na sala do Consistório onde se via ainda o grampo deixado no tecto. Este facto revela-se positivo: ainda assim, a sua ausência permitiu imaginar o contraste interessante que terá havido entre A Noiva, lustre feito de tampões OB, e os azulejos azuis e brancos da 1ª metade do séc. XVIII que cobrem as paredes da sala, e questionar, não só o valor das obras da arte contemporânea, mas os elevados níveis de sucesso que alguns artistas portugueses alcançam e que, parece, se multiplicam por todas as bienais e exposições. Este é, aliás, um problema clássico neste tipo de colecções exclusivas de arte contemporânea. Como o tempo é bom conselheiro, só a sua passagem irá permitir a imprescindível sedimentação dos objectos expostos, distinguindo o objecto decorativo, por vezes um produto fraudulento do marketing, das obras de arte, as que sobrevivem ao nome do artista, como testemunho da própria função educativa dos museus, salvaguardando o acumular de tralha.

[Susana Viegas]

Sigur Rós



Sigur Rós a triplicar dia 5 de Novembro com o cd duplo Hvarf-Heim e o dvd Heima. A nível musical, não será o acontecimento mais esperado, não só porque já circula nos downloads gratuitos, mas porque não são músicas novas: se Hvarf diz respeito a músicas nunca gravadas mas já conhecidas dos concertos, em Heim encontramos uma espécie de best-off acústico. O mesmo não diria do dvd Heima, um filme sobre os Sigur Rós com uma série de concertos realizados gratuitamente na Islândia (a casa deles) (quando terminaram a digressão) nos mais extraordinários cenários.

[Susana]

23/10/07

Nossa Senhora Fátima

Visitar o café do bairro onde vivo a um dia de semana de manhã começa a tornar-se fundamental. A um dia do 13 de Outubro, é uma trip bestial ver o programa da Fátima Lopes e a turba de senhoras domésticas e reformados solitários que ainda não receberam o prometido telemóvel, glorificando-a acima de todas as coisas. Grita-se muito, nestes belos magazines matinais. Grita a Fátima, gritam os assistentes, gritam os convidados, gritam os repórteres de rua a entrevistar o Zé Manel que nos fala da Suíça e manda um beijinho a toda a gente lá em casa, lágrima ao canto do olho, caniche ao colo e bandeira do Glorioso numa mão, que a fé católica pode ser perfeitamente compatível com a crença sobrenatural numa entidade que ultrapassa em importância qualquer santinho, vidente ou virgem: o Benfica. Há razões perfeitamente válidas para a gritaria: as velhinhas deste país agradecem não terem de se levantar para aumentar o volume do aparelho – entre a surdez e a artrite, não é fácil a vida de um fã de Fátima Lopes.

Um senhor, emocionado, relata o último milagre da Senhora:

- Eu não via o meu sobrinho, vá lá, afilhado, há pr'aí trinta, bem, foram vinte, quer-se dizer, dez, ou seis ou sete, e encontrei-o, por acaso, numa missa ontem, à uma da manhã, estava atrás de mim, acredite (pausa para limpar a lágrima, o repórter diz: amigo, tenha calma. Respire fundo, se não não se percebe nada), acredite, Nossa Senhora foi quem fez isto, mando um beijinho para a minha filha de seis meses, e à minha esposa, que é belga, estou muito comovido...

Corte para a Fátima, passagem algures ao Algarve, onde se encontra Marco Paulo, que deve a vida à intervenção de Nossa Senhora:

- Foi graças a ela (mão no peito, rosto sofrido, olhos por detrás dos óculos escuros raiados de lágrimas) que recuperei da minha doença, devo-lhe tudo, daqui de onde estou, agradeço, que ela está aqui, a Nossa Senhora não é de Fátima, é do mundo, é do povo.

Regresso ao estúdio, alguém vai cantar, daqui a pouco publicidade e depois voltamos a Fátima, onde os milagres podem acontecer.

Não vale a pena procurar explicações para o fenómeno de Fátima noutro sítio que não seja o Portugal retrógado de 1917. Que, passados 90 anos, continua tão retrógado como era nessa época. Curiosa é a coincidência da Revolução Comunista ter acontecido na mesma época das aparições. Menos curioso é o facto das aparições terem sido utilizadas como arma política contra a emergência da nova potência comunista, a União Soviética. Imagino que as visões de Lúcia, de um apocalipse liderado pelas hordas de proletários, tenham mais a ver com a hierarquia católica ameaçada pelo ateísmo que o comunismo preconizava (apenas há lugar a um ópio para o povo, o belo ideal revolucionário propagado pelo Querido Líder), do que com algum cogumelo mágico encontrado pelos pastorinhos e pelo povaréu que se juntou ali na Cova da Iria (embora haja relatos de uma erva-do-diabo que crescia à sombra da azinheira milagrosa). Há árvores que choram, quadros de santas que sangram, cadáveres que não se decompõem, mas é difícil atingir o estado de delírio a que se chegou naquele dia. Tão delirante, tão delirante, que nem a fiável objectiva de Joshua Benoliel (por sinal, um ímpio judeu) conseguiu apanhar o milagre do Sol rodando sobre si próprio (há uma música sobre isto em “Piper at the Gates of Dawn”). Fixou-se antes na multidão de devotos, braços abertos em direcção ao céu, rostos crédulos e esfomeados esperando por um milagre que os salvasse da miséria em que viviam.

Salazar e a Igreja Católica encarregaram-se do resto. Fim da história.

Noventa anos depois, o delírio entra pelas casas dentro. E, no fundo, entre uma peregrinação a Fátima e uma visita à catedral da Luz não há muita diferença. Cada um dedica-se ao culto que mais lhe convém. E se possível, acumulando. Garantem-se assim maiores possibilidades de salvação. Amén.

(Texto originalmente publicado no irmão lúcia)

[Sérgio Lavos]

22/10/07

Homo Sapiens Watson

Não deveria ser assunto que merecesse um texto aqui, depois de ter lido esta brilhante refutação de Vasco Barreto no Cinco Dias; ainda assim, há coisas que se tornaram um hábito, e nem assim se tornam confortáveis. Os textos que defendem, de forma mais ou menos velada, mais ou menos hábil, as afirmações de James Watson, têm em comum o fantasma recorrente da liberdade de expressão. E o espantalho do politicamente correcto, para afastar as mentes mais susceptíveis. Torna-se cansativo. Para além de aturarmos a pesporrência ignorante de um prémio nobel desatinado, levamos com os habituais especialistas em tudo e coisa nenhuma, que, à primeira oportunidade, se socorrem da agenda política do costume.

Qual não foi a minha surpresa ao ver o habitualmente (para mim) inatacável Desidério Murcho juntar-se ao coro de carpideiras, com João Miranda à cabeça. Deste último, já não se espera muito. Na cabeça da alegre tropa fandanga de fãs que linka o Blasfémias e parasita a caixa de comentários, não há superioridade genética que resista à solidão do neurónio. Normal. Como também é o facto de a maior parte dos Mirandettes não snifar sequer a agenda política do ídolo - a revelada e a oculta (ou já ninguém se lembra de Pinochet, esse grande defensor da liberdade de expressão à força de armas, ou de Salazar, paladino da virtude libertadora do silêncio à luz de velas - pingando quentes sobre a pele -?).

Isto é João Miranda. Mas Desidério Murcho? Vejamos o que me interessa, citando:

Em conclusão, Watson pode estar a ser vítima do “politicamente correcto”. Hoje é proibido pensar que as pessoas podem ser diferentes umas das outras em capacidades cognitivas, sendo tais diferenças correlativas às suas origens genéticas. Tal como é proibido dizer que o aquecimento global não é provocado pelos seres humanos. A proibição em si é grave, pois mostra até que ponto estamos em pleno pesadelo orwelliano.

Primeira frase, o "politicamente correcto". E o que pensa o PC? Que é errado achar que as pessoas podem ser diferentes em termos de capacidade cognitiva, se estas diferenças forem causadas por diferentes origens genéticas. Abandonemos a paráfrase. O que existe de falacioso nesta frase? Não foi ainda provada uma correlação entre origem genética e capacidades cognitivas. Portanto, não há argumento racional que possa contradizer o facto de ser eticamente mais correcto achar que todos os seres humanos possuem as mesmas potencialidades a nível cognitivo, independentemente da sua origem geográfica ou étnica. E porquê? Porque a genética provou que apenas há uma raça humana, o Homo Sapiens Sapiens. Como, de resto, Desidério Murcho sabe, se esquecer por um momento a sua própria agenda anti-politicamente correcto.

O pensamento "claro e disciplinado" da filosofia deveria servir pois, antes de mais, para reflectir na razão de acreditar mais em estudos científicos que analisam a média do QI de diferentes grupos étnicos norte-americanos (a famosa Curva de Bell) do que numa evidência científica mais que comprovada. O QI, e as medições que dele se fazem, está longe de ser um valor absoluto. Já a homonogeidade genética de toda a Humanidade, ninguém com boa-fé poderá colocar em causa.

Dispenso-me a outro tipo de considerações em relação à lógica enviesada do texto de Desidério Murcho. Se a premissa é errada - a suposta cientificidade a qualquer prova dos estudos de demonstram as diferenças cognitivas de acordo com a "raça" - nenhuma argumentação pode ser considerada válida. Ou , vá lá, inteligente.

A cegueira provocada pela sanha anti-politicamente correcto é uma doença que alastrou tão rapidamente como o próprio PC (e não é estranho que a sigla maldita se confunda com o partido do mesmo nome - é a política, estúpido!). Que gente com um "pensamento claro e disciplinado" se associe (indirectamente) a nebulosos comentadores de tudo e nada, é que é surpreendente. Por vezes, é preciso pouco para despertar o monstro. Um cientista idiota e racista não é pouco.

[Sérgio Lavos]

Mudança

Estava a ver o "Câmara Clara", bem sentado, confortável, a olhar para o ar também confortável (alguém maldoso diria acomodado) do Zé Pedro e, principalmente, de Pedro Ayres Magalhães, e imaginava o que seria o Bairro há trinta anos, quando meia-dúzia de voluntariosos decidia imitar as bandas que via no NME e ouvia em vinis importados de Inglaterra (Miguel Esteves Cardoso explicou tudo muito bem explicadinho na sua "Escrítica Pop"). Não é a minha história. Conheci os Xutos por alturas do "Circo de Feras"; respeito - mas não vibro. Aprendi a gostar de alguma música com Zé Pedro - num programa de TV dos princípio dos anos 90, o Vira o Video, que ele apresentava em conjunto com a Xana e o Henrique Amaro; os Young Gods, as vezes que passaram Gasoline Man no programa! E a improvável fama para os Mão Morta - em Budapeste.
Quinze anos depois, trinta anos depois, depois da comenda e da consagração nacional, depois dos anos de estrada e da música de combate dos Xutos, da cena facho-romântica dos Heróis do Mar, depois de tudo, a calmia da meia-idade. Zé Pedro é Zé Pedro. Já Pedro Ayres foi provocado várias vezes. Manteve-se calado. Falou-se de política. Falou-se do percurso de Nick Cohen, jornalista criado pela esquerda e como tal edipianamente distante da esquerda.
(É tempo de alguém que ainda seja de esquerda escrever um livro sobre todos os intelectuais e ideólogos de esquerda que chegaram à meia-idade a apoiar cegamente a administração Bush ou a tibieza de Durão Barroso. Que percursos são estes? Que motivações? Que complexo ou recalcamento conduz homens como Cohen ou os neoconservadores, ou Pacheco Pereira, ou José Manuel Fernandes? Mudou mesmo alguma coisa nestes homens?)
Não há revolução que não precise de sangue quente e pouco neurónio. E não há revolução que não deixe de fazer sentido quando se chega aos 40 e já se conseguiu conquistar tudo o que havia para conquistar. Vejo os dois músicos, e sei que o Zé Pedro deixou a má vida, os abusos, e imagino-o sentado à lareira, recordando ultrapassadas rebeldias. Pedro Ayres Magalhães tem ar de bon-vivant. Comida e bebida. Desfrutar. Olhando para o passado sem ansiedade, com ironia mais ou menos arrependida.
Não é uma coincidência que ambos os músicos tenham referido a admiração comum por Bob Dylan. Dylan, de guitarra sob o braço cantando para uma multidão com desejo de revolução (a pandilha folk), já se via quarenta anos depois trovando sobre o desencanto do mundo, do tempo que o espartilha, da mudança. Dylan nunca quis fazer revoluções, a não ser na sua própria maneira de ver as coisas. A grandeza de um homem não está naquilo que consegue mudar, mas sim no que consegue guardar do tempo que mudou. Não sei que outra definição possa ter a sabedoria.

[Sérgio Lavos]

20/10/07

Mulheres de Hal Hartley

Valeu a pena ter visto "Fay Grim" depois de meio mundo já o ter feito. Falar das coisas em segunda mão é mais fácil. Fui lendo e fui esquecendo assunto por onde começar a conversa. Ou o texto. E agora (como quase sempre) nada tenho a acrescentar a tudo que li e ouvi. Queria falar apenas do aspecto mais sedutor da obra de Hal Hartley (sempre gostei do nome, tão americano como os filmes dele): as mulheres. Mas dizem: isso é uma redundância. Concordo. Falar das mulheres de Hartley é redundante. É verdade que há outras mulheres, de outros cineastas, mais belas, mais deslumbrantes, com mais "qualidade de estrela". Mas as mulheres de Hartley são especiais porque se apaixonam perdidamente (e eu só conheço uma outra perdida de amores a sério no cinema, Shirley McLaine em "Some Come Running"). E apaixonam-se perdidamente por tipos vulgares, rufias, inadaptados displicentes que não têm onde cair mortos; mecânicos que poderiam, se quisessem, citar Kierkegaard sem pestanejar (julgo que foi o próprio realizador quem afirmou isto). Ninguém disse que a pretensão é um mal em si. Se serve para deixar pelo beicinho Elina Lowhenson, Parker Posey ou Adrienne Shelley (uma pontada no coração, meu Deus, ao escrever este nome), deveria servir para tudo o resto.
Nada disto é novo, eu sei. Brutamontes rodeados de mulheres espojadas aos pés é um cliché do cinema. Já brutamontes sensíveis brincando ao Belmondo para cima de uma qualquer pálida beleza é uma coisa rara. No fundo, gostaríamos todos de conhecer mulheres como as de Hal Hartley (e imito aqui o que uma mulher me disse em tempos algo de semelhante a propósito dos homens, ou melhor, Martin Donovan em "Trust"); mulheres fortes que caem nos nossos braços à primeira investida séria - e peço desculpa pelo termo animalesco; falamos de fantasmas, de cinema. Imagens projectadas numa tela.

[Sérgio Lavos]

19/10/07

Memento

O nosso amor pelas coisas pode estar ligado ao nosso amor pelas pessoas. O nosso amor pelas coisas funda-se num tempo concreto - e num rosto absoluto, de um amigo ou de uma amante. De um filho. As coisas que percorrem, desde um tempo longínquo, o caminho que percorremos. As coisas que, unidas, sobrepostas, somadas, são o próprio caminho. As coisas de que gostamos - livros, filmes, quadros. Uma paisagem, um jardim, um edifício. Em tal lugar eu amava e através do amor que sentia por ti sentia o amor pela imagem que via. "Trust". Deixavas-te cair no vazio, de olhos fechados, e eu apanhava-te. Aquele era o nosso lugar, e eu apanhava-te. Aquele era o nosso filme; nada poderá apagar o momento em que o registo foi feito: nada apaga um momento no passado em que a imagem coincidiu com o acreditávamos estar nascendo. O nosso amor pelas coisas baseia-se na mais concreta das abstrações: o amor pelo outro. Não há lugares sem emoção, sem memória. Eu recordo. Julgo que ainda recordas. Espero. O lugar em que a coisa amada e o amor se confundiram. Espaço e tempo confluindo. Caos com ordem formando-se, destacando-se, organizando-se. A crença na ordem. Nascendo.

[Sérgio Lavos]

Calar

Se envelhecer é um risco, nem quero pensar no risco que possa ser esquecer.
Esquecer o que antes sabíamos de cor. De coração. É nas entranhas que se esconde o que sabemos (nunca na memória). O instinto. Pegar numa situação, um acontecimento, e revirá-lo, de ponta a ponta, remexer, de alto a baixo, saber o que fazer com os imprevistos do dia-a-dia. Empurrar o tempo contra o tempo - de modo a que avance. Medir a tensão - em pontos de contacto, nervo - entre certo e errado. Antes, distinguir o certo e o errado. Ter a certeza de sabermos distinguir o certo e o errado.
Nunca saber é a maior sabedoria. Viver na inocência. Se o inferno é o esquecimento, a maior virtude é a ignorância. A felicidade mais certa é ignorar que uma criança sabe mais da vida que o mais sábio dos sábios. Ignorar o lugar-comum anterior (da ignorância), iludirmo-nos com o conhecimento; convencermo-nos de que a procura de conhecimento é o único sentido possível para o desejo. Tornar o cumprimento da felicidade o fito possível.
Reconhecer na palavra o limite do conhecimento. Saber que dizer a palavra não é mais do que repetir a palavra. Evitar tudo isto. Evitar. Tudo. Envelhecer. Calar a palavra. Emudecer.

[Sérgio Lavos]

17/10/07

Fionn Regan


Novo vídeo para o irlandês Fionn Regan , Be good or be gone, uma espécie de anti-vídeo profissional, encontro técnico entre a montagem, perfeita, e a captação sonora, local e impura.

[Susana]

15/10/07

Radiohead

Cada texto tem um ritmo. Este, por exemplo, dança ao som de In Rainbows, dos Radiohead. Não escrevo assim tantas vezes ouvindo música, preciso do silêncio para a concentração. As palavras têm a sua sonoridade própria, e elas reclamam pela atenção exclusiva que lhes possa dedicar.
Mas escrevi a primeira palavra com a intenção de falar sobre o último álbum da banda que definiu a minha vida nos últimos quinze anos. Vá lá, cedemos à emoção. Ao exagero. Pode uma banda definir uma vida? Cinismo ou abuso da paciência de quem lê? É sério, os Radiohead conduziram a minha vida durante os últimos quinze anos. O que sou por vezes e o que desejo ser quase sempre.
Pensando bem, não é coisa de que me possa orgulhar. Uns tipos entre o paranóico e o deprimente, com um vocalista de rosto assombrosamente assimétrico e a tendência para escrever sobre ovnis e conspirações capitalistas. Define uma geração? Conhecem alguém que, a determinada altura, não tenha sido seduzido pela paranóia pós-moderna?
Quando se fala de Radiohead, fala-se apenas de música? A inovação recente - disponibilizar o álbum para download por um preço à escolha do fã - é apenas um pormenor na carreira. Quando, com Ok Computer, decidiram questionar a música pop desde as suas raízes, teorizando de forma prática, através dos próprios sons produzidos, sobre o que havia antes deles, revolucionaram tudo. Mas revolucionar, é claro, não significa sempre inventar - e os Beatles iniciaram tudo. Mas um discurso teórico (perdão pelo pretensiosismo) sobre a própria produção musical é coisa rara; se quisermos falemos em desconstrução - e não é preciso referir John Cage. A maior revolução foi terem reflectido sobre o que faziam criando álbuns ouvidos por milhões. Desde Ok Computer, cada álbum dos Radiohead pode ser ouvido a diferentes níveis; se quisermos, são constituídos por diversas camadas de interpretação.
Fui demasiado longe? Seja. Tentar racionalizar a paixão por uma banda leva a um discurso manco. Falta sempre qualquer coisa. Qualquer coisa que descreva com exactidão poética o fascínio. Enveredemos pela metáfora, então. Imagine-se a tal metáfora. A que defina na perfeição a importância dos Radiohead na minha vida. Eu não consigo. E, no fim de contas, falamos apenas de música pop.

[Sérgio Lavos]

14/10/07

Paul Auster, auteur

Há certas coerências fáceis de manter quando estão em causa figuras intocáveis do nosso imaginário. Quando escrevo sobre cinema, raramente me refiro a filmes de que não gostei. Óptimo. Vejo, penso um pouco, esqueço. Não me insurjo contra opiniões de que discordo. Não no blogue. Falando de cinema, claro. A incomodidade é esta: não posso concordar mais com este texto do Lourenço. E tenho pena que todos os que gostam de Paul Auster escritor não tenham escrito sobre o mau filme que é "A Vida Interior de Martin Frost". Eu não diria que é um filme do género " tédio passeando pelo arvoredo"; não quando o exemplo dado é "Last Days", de Gus van Sant, que é um dos filmes com poucos diálogos de que mais gosto.
Auster é um bom contador de histórias (e quase escrevi "estórias", mas corrigi a tempo); acertou em dois ou três romances; consegue continuar a entusiasmar apesar do bloqueio criativo recente (por isso tem se interessado pelos domínios da metaficção e da ficção auto-referencial); mas não é, de modo algum, um cineasta. Alguém que domine a linguagem cinematográfica de modo seguro. A prova disto é a diferença entre os dois filmes que ele dirigiu em conjunto com Wayne Wang, "Fumo" e "Fumo Azul" e os dois que realizou a solo, este e "Lulu on the Bridge". O universo é o mesmo. O poder encantatório é semelhante. A marca "auster" é reconhecível à distância. Mas não chega ilustrar uma boa história com imagens. Nunca chegou. A velha ideia de que uma uma história fraca pode dar um grande filme (e penso em Hitchcock ou "As Pontes de Madison County") ainda é válida. E uma boa história tem de ser obliterada, implodida, para se transformar em bom cinema. Auster não o sabe fazer. É pena.

[Sérgio Lavos]

Ide, ide lá, meus amigos

Uma bela homenagem a Fátima e às aparições, no irmão lúcia, com a minha pia contribuição.

[Sérgio Lavos]

11/10/07

Doris Lessing (2)

Há sempre a velha questão da morte. Lessing nasceu em 1919. Não arrisco nada se disser que o prémio foi atribuído antes que. É claro que seria uma tragédia se, por exemplo, Philip Roth desaparecesse durante o próximo ano. Borges passou incólume pelo mundo, e nem a velhice o resgatou à casmurrice dos membros da academia (alimentada por uma viagem turística extemporânea ao Chile). Ele ainda continua por cá - e não há-de tardar até vermos um conto dele adaptado a filme (se até Saramago...). Não há, é claro, critérios límpidos - e demasiadas vezes há razões políticas. Culpar quem? O comité, composto de vinte nórdicos que ninguém conhece, que tiveram como antecessores gente que andou durante décadas a dar prémios a pouco ilustres autores escandinavos, desconhecidos no resto do mundo, num tempo em que, imagino, a maior parte dos bons escritores não estava disponível em sueco? E depois, as questões políticas, humanitárias. Não digam que é um prémio de literatura, por favor. Lessing nasceu na Pérsia (que agora se chama Irão) e viveu na Rodésia (agora Zimbabué). Feminista. Marxista. O fardo do homem branco. Nobel de quê?

[Sérgio Lavos]

Doris Lessing

Não faço ponto de honra de não ler os prémios Nobel que ainda não li. Mas não leio. Doris Lessing é excepção, dos laureados dos últimos anos, e talvez regresse a ela. Curiosamente, depois de ter lido há mais de 15 anos um romance (que não tenho, não me recordo do nome e não vou verificar na Wikipedia, correndo o risco de falar de algo que, efectivamente, não li), li recentemente um excelente conto incluído no volume "Modern British Short Stories": "To Room Nineteen". Merece? Não é questão que se coloque; nunca é, e é sempre. Um circo que actua num mundo paralelo à literatura. Divertimento intelectual para as massas. Marketing para totós no seu melhor estilo.

[Sérgio Lavos]

10/10/07

Literatura às postas

Bem servido, bem regado, como o bom bacalhau português. Carne suculenta, a escorrer azeite, virgem virgem, as postas bem dispostas sobre o prato, Philip Roth para aqui (7/1), Don de Lillo para ali (25/1), a acompanhar, bom vinho, boas postas, Murakami (5/1 [??]) com umas ervinhas aromáticas, digestão fácil, aperitivo levezinho, toma toma, e para prato principal, un Pinchonzinho (10/1), vai? acompanhado de um arrozinho malandro, escondidinho, um mimo, ou prefere um Vargas Llosa (20/1), tradicional, sabor de outro tempo, assenta bem no estômago, apesar da digestão complicada, e para segundo prato, un Ian McEwan (40/1)), no caso de ter preferido o Pynchon para primeiro, é mais suave ao paladar, ou então um Cormac (50/1), para ficar sem fome durante muito tempo. Para sobremesa, um Salman Rushdie (100/1) ou um Paul Auster (100/1), o primeiro pode ser servido acompanhado de um cálice de Joyce Carol Oates (9/1), óptima colheita, bebe-se de um gole, ou então de uma Margareth Atwood (20/1), complemento possível para uma dieta exótica - Adónis (14/1), David Malouf (50/1) ou Amos Oz (6/1). E no fim, um óptimo Bob Dylan (100/1), seco, perfumado, para fumar devagar ao som do silêncio - e olhe, aproveite e leia um livro; um Kundera (33/1), colheita vintage, de 1967. Bom proveito.

(Nunca: Murakami. Já: Don de Lillo. Daqui a uns anos: McEwan.)

[Sérgio Lavos]

Problema de expressão

De certeza que não há qualquer ligação: mas não é que José Rodrigues dos Santos, que anda num queixa-não queixa, sofre-não sofre pressões do governo na sua (primeira) profissão, e apareceu em dois dias seguidos nos dois principais jornais nacionais, vai lançar ainda este mês o seu próximo (e bombástico) best-seller? Não lhe chega aparecer todos os dias nos ecrãs de televisão? Afinal, o que tem ele a dizer que não se saiba já?

[Sérgio Lavos]

Saber (2)

A mais bela tragédia oriental: "O Conto do Crisântemo Tardio", de Kenji Mizoguchi

[Sérgio Lavos]

Saber

No limite, não há sabedoria que não seja zen. O aforismo ocidental tenta concentrar esperteza e rapidez de raciocínio - mas consegue apenas atingir o estado de witt, indispensável em convívios de outros tempos ou conversas de agora, ineficaz em termos de profundidade de pensamento. O aforismo zen alude sempre a algo que as palavras não dizem - a verdade que se esconde no ritmo do verso, a superfície clara de um lago de águas turvas. Digamos que o aforismo é um vício pós-moderno e a sabedoria zen é intemporal - a intensidade que concentra as multiplicidades essenciais do mundo.

[Sérgio Lavos]

07/10/07

Espiral

Por muito neutro que um blogue seja (neutro no sentido de revelar o que o autor é, o que sente), acaba sempre por não o ser, é sempre um espelho que, mais ou menos limpidamente, reflecte o momento em que o texto é escrito. Pode não parecer, mas há coisas mais óbvias do que esta.
Falar do óbvio é sempre estimulante para quem lê. E quem lê blogues são principalmente bloggers. Esta raça gosta tanto de escrever sobre si própria como de ler o que os outros escrevem sobre ela. Escrever sobre o óbvio. É claro que nem sempre o óbvio é visível. Precisamos que alguém o torne. Sopre o pó. Limpe o espelho (depois de um belo e prolongado banho de imersão). Quando lemos essas evidências, rejubilamos. O reconhecimento do outro. Saber que o isolamento a que estamos submetidos é partilhável.
Mais fácil do que escrever sobre a realidade que nos atormenta é descrever o processo de escape que usamos para fintar essa realidade. Um texto intimista é sempre ficcional, outra evidência. Mas os jogos linguísticos são infinitamente ricos. Alimentam-nos até à exaustão, são gordura para um obeso ou açúcar para um diabético (têm tanto de desejo como de prejuízo). Enrodilhar a língua nela própria, emboscar o sentido das frases.
Saber que alguém escreveu não sei quantas vezes antes isto mesmo que escrevo agora. Um blogue não é neutro, nem quando se limita a reproduzir uma notícia, a linkar um texto. Há originalidade num link? Há sempre subjectividade, e um texto que não tem consciência de si próprio não merece continuar a ser lido.
(Agora concluo generalizando.)
O que é um texto neutro? Sentados na cadeira que nos foi indicada, escrevemos para uma plateia que espera aprender com a evidência das nossas palavras. De que serve então negar o absolutismo da linguagem, a sua concreta subjectividade?

[Sérgio Lavos]

Imaginar

Para um escritor que sempre viveu da capacidade imaginativa, torna-se difícil chegar a uma fase em que a imaginação começa a escassear. O bloqueio do escritor, termo que, para muitos, descreve apenas pouca vontade de trabalhar, faz todo o sentido em alguns casos. Imagino que exista um limite para a quantidade de metáforas que um escritor consegue produzir, para a diversidade de enredos que possam surgir. Muitos resolvem o problema escrevendo sempre o mesmo livro - o que é diferente de criar um universo. Pode-se falar de coisas diferentes dentro das mesmas quatro paredes - as personagens mudam. Há quem passe uma obra inteira reescrevendo o mesmo livro - "tentar uma vez; falhar. Tentar novamente; falhar melhor". Há quem nunca tenha conseguido o fôlego da grande literatura - mas persista na afirmação da grandeza alimentado por um ego que balança entre a euforia e a amargura do fim.
Enfim.
Nada disto surge do nada. Ao ver "A Vida Interior de Martin Frost", reencontrei um amigo de longa data - e Paul Auster esteve mesmo lá, na sala de cinema, e disse algumas palavras de circunstância a propósito do seu segundo filme (se não contarmos com as experiências conjuntas com Wayne Wang, "Smoke" e "Blue in the Face").
Há uns tempos, Auster disse que "Viagens no Scriptorium" provavelmente seria o seu último livro. Nota-se o cansaço, o bloqueio criativo. Acontece muito, o escritor que se encontra nesta situação reflectir acerca da condição de escritor. Pode-se dizer que aqueles que sempre escreveram sobre isso estão em permanente bloqueio criativo. Um escritor com uma consciência demasiado aguda do acto criativo não consegue produzir com inteira liberdade. É preciso que aconteça um movimento que desloque o escritor da realidade onde ele vai resgatar a sua matéria-prima. Pairar acima do solo que sustém a obra. Efabular e deixar-se levar pelo poder encantatório da fábula.
Ou então, jogar com aquilo que nunca se esgota - a linguagem. Mas falamos de outra espécie de escritores. A mais rara.

[Sérgio Lavos]

03/10/07

Ter uma nova ideia


"Mr.Blank pára. Uma nova ideia acaba de surgir na sua cabeça, uma diabólica e devastadora iluminação que faz disparar uma onda de prazer que lhe arrepia o corpo todo, desde as pontas dos pés atá às células nervosas do cérebro. Num só instante, toda a trama, toda a história, se tornou clara para ele, e, ao contemplar as arrasadoras consequências daquela que, sabe-o agora, é a escolha inevitável, a única escolha viável entre um ror de possibilidades em confronto, o velho desata a bater no peito e a dar pontapés no ar e abanar os ombros enquanto se lança numa convulsiva e desvairada chinfrineira de riso" Viagens no Scriptorium, edições ASA

Na mesma semana em que estreia em Portugal o novo filme, A vida interior de Martin Frost, Paul Auster vai estar na Livraria Bulhosa de Entrecampos amanhã, dia 4, das 12h às 13h.

[Susana]

01/10/07

Dexter

Raskolnikov era capaz de não sobreviver a um rendez-vous com Dexter. O que Dexter tem de original? O bronzeado de Miami. O cabelo ruivo. O facto de ser colaborador da polícia. O gosto por retalhar cirurgicamente assassinos, para depois regressar a casa e às duas adoráveis crianças que (por vezes) dormem debaixo do mesmo texto que ele. Quem é Dexter? A melhor invenção da Fox desde Dr. House. Às quartas, no novo canal FX.

(E é claro que Dexter é também Michael C. Hall, que não era visto desde que terminou "Sete Palmos de Terra".)

[Sérgio Lavos]

In Rainbows


Depois da resposta que esperava da fct, a segunda melhor notícia de 2007 é, provavelmente, o novo álbum de Radiohead anunciado para 10 de Outubro (em download aqui).

[Susana]