27/08/07

A pátria

Ao ver Nélson Évora emocionado (e feliz, e principalmente perplexo) a ouvir o hino, não deixei de pensar naqueles que, neste momento, mais sofrem: os meninos de cabeça rapada que não se cansam de dizer que têm orgulho em ser português. Nélson Évora, nascido na Costa do Marfim, filho de pais cabo-verdianos, puro ébano, português desde criança. Como antes Naide Gomes, nascida em São Tomé e portuguesa desde muito cedo. Ou mesmo Francis Obikwelu, que aos vinte anos se exilou por cá (imagine-se, alguém gostar de viver em Portugal) e decidiu renegar as suas origens nigerianas, naturalizando-se português. Alguém duvida que, olhando para a bandeira, Obikwelu não pense em tudo o que o país lhe ofereceu? Uma pátria, uma carreira, fama e dinheiro.
Gosto de atletismo desde criança, fascina-me o esforço levado até aos limites, a afirmação simbólica da vontade individual, a superação. E o culminar de qualquer prova de atletismo é o momento da subida ao pódio, a bandeira e o hino. Os rostos de alegria, plena ou emocionada, a indescritível sensação que deve ser estar lá em cima. Assisti em directo (era um miúdo, mas vi) à vitória de Carlos Lopes, a mais significativa, por ser a primeira de Portugal nuns Jogos Olímpicos (no atletismo). E no mesmo ano recordo Rosa Mota na maratona a ultrapassar nos últimos quilómetros Ingrid Christiansen para chegar à medalha de bronze. Lembro-me melhor destes momentos do que das vitórias seguintes. Depois, a gloriosa vitória de Fernanda Ribeiro nos jogos de Atlanta, am 1996: a desforra da derrota na final dos 5 000 metros contra Wang Juxia (Fernanda nem sabia como se pronunciava o nome da chinesa). Nos 10 000 metros, a vontade pura, a tenacidade, contra a superioridade da outra atleta. Os metros que a Juxia conseguiu cavar antes da última volta, e a recuperação final, até ao triunfo.
O que é o racismo? Acima de tudo, a supremacia da ignorância sobre a sensatez das evidências. Nenhuma simbologia abstracta - a pátria, a raça, a nacionalidade - resiste à força das excepções. Eusébio tornou-se um símbolo nacional numa época de colonialismo. A França foi campeã do mundo de futebol com uma selecção de imigrantes de segunda e terceira gerações durante um período de emergência de Le Pen e seus comparsas. O pequeno racismo, de taberna, do português médio, torna-se ridículo perante a admiração de figuras como Liedson, Luisão ou Quaresma. As claques futebolísticas e a sua escola de selvageria skinhead são, neste aspecto, sintomáticas da estultícia de qualquer ideologia supremacista - insultar os adverários pela cor da pele, aplaudir os jogadores estrangeiros do clube que apoiam. Alguém os levará a sério?
Sinto-me mais português quando vejo Nélson Évora ou Francis Obikwelu no pódio, hino a tocar, bandeira ao vento. Eles escolheram ser portugueses. Se por cada um dos que escolhem, fosse retirada a nacionalidade a outro que a envergonha (e a ignorância racista é um dos piores crimes cometidos contra o orgulho pátrio), viveríamos num país mais saudável. Mais livre. Melhor.

[Sérgio Lavos]

5 comentários:

Anónimo disse...

Num ignóbil fórum português de discussão alguém proferiu o seguinte: "Sou racista, mas esse gajo ganhou uma medalha e por isso perdoo-o. Quando ele perder, volto a insultá-lo."
Um racista, pelos vistos, é muito mais idiota do que eu imaginava...

Luís Daehnhardt disse...

Caro Sérgio,

De facto, ser racista em Portugal é estar contra Portugal; um país que sempre cultivou a diversidade.

Vale a pena recordar a "política da cama" levada a cabo pelos portugueses na Época dos Descobrimentos. Diziam as más-línguas que Deus tinha inventado o branco, o preto, o amarelo e o vermelho, e o português inventou o mestiço...

Ricardo Miguel Costa disse...

As novas liçõers de colonização.

Sérgio Lavos disse...

O racista, em geral, tende para a idiotia aguda. Por isso, não entende a bela invenção dos portugueses: a mulata cabo-verdiana, por exemplo. Nem que seja por isso, já deixámos alguma coisa de importante ao mundo.

sem-se-ver disse...

sim sim sim sim