20/01/08

Expiação

Não sei se é apenas impressão, mas todas as críticas ao filme Expiação escamoteiam o facto de este adaptar o melhor romance desta década, o melhor de um dos melhores escritores actuais, Ian McEwan. Desconfio mesmo que a maior parte dos críticos não leram o livro, e por isso insistem em afirmar banalidades sobre a qualidade romanesca da história (alguém sabe o que isso é?) ou tecer loas ao estilismo romântico de Joe Wright (isto é nome de cineasta?!).
Vamos lá ver bem as coisas como elas são: a partir de um romance cujo tema é a criação, o próprio acto de escrita (um acto de amor), seria impossível produzir um filme que estivesse à altura do material original. A transcrição da história não seria suficiente para reproduzir todas as nuances da linguagem de McEwan, os diversos planos narrativos, as citações a outros autores, a perspectiva metaficcional a que McEwan se propõe. Se um romance nunca é a história que conta, pode muitas vezes parecê-lo (por isso, Hitchcock soube aproveitar obras menores e transformá-las em obras-primas do cinema). Mas em McEwan a linguagem não é um espartilho para a história; é o impulso para as diversas peripécias, o sopro que insufla as personagens.
E o que significa isto, quando transposto o portal que separa o mundo da literatura (composto de imagens que nascem no momento em que as palavras são lidas) do mundo do cinema (em que as imagens são oferecidas ao espectador, cerceando a imaginação a que um leitor é forçado)? Bom cinema, no caso de Joe Wright. As imagens que vemos são novas, e não porque o realizador se tenha afastado do enredo original; antes ilustrou, mas fê-lo de uma forma que não renunciou a um pensamento original, a boas ideias para solucionar os problemas colocados, no fundo a uma ideia de cinema. Os exemplos estão lá, para quem os quiser ver: o brilhante plano-sequência em Dunquerque (há quem tenha referido Kubrick, eu, exagerando, lembrei-me de A Sede do Mal, de Welles); os flashbacks inseridos cirurgicamente, sem que se perceba de imediato, criando uma ilusão de continuidade temporal, dois tempos diferentes que se fundem num só; a solução encontrada para mostrar o fundamento da história: o engano criminoso de Briony. A cena filmada através da janela, pelos olhos de Briony, e depois no exterior, do ponto de vista de Cecilia e Robbie. As fraquezas? Os actores principais, o inócuo James McAvoy e a sobrevalorizada (como actriz e mulher) Keira Knightley.
Expiação
podia ser mesmo um épico romanesco tão marcante como O Paciente Inglês (não por acaso, Anthony Minghela aparece como actor neste filme, entrevistando na cena final uma Vanessa Redgrave a fazer de Briony envelhecida), se o cast tivesse sido diferente (penso em Rachel Weisz e Christian Bale, por exemplo). Descontando isto, e um ou outro pormenor desnecessário (a banda-sonora a intrometer-se nas imagens, as cabeças cortadas em alguns enquadramentos), acaba por ser um bom filme, que merece o esforço que possa fazer para gostar dele - foi assim que comecei a admirar O Paciente Inglês e O Fiel Jardineiro, não seria coisa nova.
Querer que os críticos leiam o romance de McEwan é esperar muito. Que diminuam o filme, colocando-o na extensa prateleira das adaptações literárias de época, não se entende. Não se pretendia originalidade. Apenas alguma fidelidade ao espírito da obra adaptada. E a melhor maneira de conseguir isso é filmar bem, com mão virtuosa. Joe Wright, se não o consegue totalmente, fica muito perto. Seria difícil melhor. (Barry Lindon é um caso à parte).

[Sérgio Lavos]

7 comentários:

André Moura e Cunha disse...

Oh pá, por vezes há coincidências que arrepiam - se passares por lá, pelo meu blogue, vê-la-ás. Vi o filme na sexta, escrevi o texto ontem, retoquei-o hoje - o fim-de-semana costuma ser por cá um bulício... a prole dá cabo de mim.
Só não sou tão encomiástico em relação ao Wright, falta-lhe a destreza de Minghella nas suas adaptações (Ondaatje e Highsmith) ou o génio de Ivory. Falta-lhe qualquer coisa… tento explicá-la no meu texto.
Abraços,
André

Anónimo disse...

Curioso. Sou forçado a concordar, relativamente à Keira. Dificilmente compreenderei como é que a aparência subnutrida poderá ser alvo de tantos elogios, bem como a habilidade tão particular de manter a mesma expressão facial do início ao fim de um filme.
Quanto ao Expiação propriamente dito, não vi nem quero ver, não enquanto não ler o livro.

Unknown disse...

Não li o 'Expiação', nem considero necessário tê-lo lido para escrever sobre o filme. Um filme é um filme, um livro é um livro. Pessoalmente não considero Ian McEwan, nem de longe, um dos melhores escritores da actualidade mas, uma vez mais, isso não vem ao caso no momento em que avalio o filme.

Sérgio Lavos disse...

caro Harry:

seria sempre interessante ler o livro para se perceber o que perdemos com o filme. principalmente porque não é um livro qualquer. mas é claro que toda a gente já viu filmes que adaptam obras literárias sem se sentir compelido a ler de seguida o livro. são coisas diferentes, é verdade. mas talvez me tenha chateado mais neste filme porque grande parte do que existe de bom no filme está na história, e o mérito desta é todo do McEwan (com uma ajudinha do Hampton, pronto). e muito do que se perde é o melhor do romance, mas enfim, não se pode ter tudo.

caro luís:

será normal alguém achar que a tábua de engomar que a Keira tão orgulhosamente exibe tem um sex-appeal retumbante? é que, por exemplo, a Kristin Scott Thomas é também um pouco assim, mas compensa com uma discreta inteligência e sensibildade representativa. por outras palavras, é uma mulher porquem nos poderíamos facilmente apaixonar se vivêssemos no deserto no meio dos berberes e não víssemos um rabo de saia há mais de 10 anos. já Keira Knightley, bem... podia ficar com os camelos.

Anónimo disse...

O que me chama a atenção é a menção da 'discreta inteligência e sensibilidade representativa'. Concordo inteiramente, e parece-me não ser muito comum. É daquelas actrizes completamente ignoradas por quase todo o tipo de público. Talvez seja uma actriz demasiado subtil, não sei.
Relativamente a O PAciente Inglês, acredito que a Keira Knightley não teria nem a sensibilidade (procurei não repetir a palavra, mas é esta a correcta) que a Kristin demonstrou, nem o corpo que a Kristin numa ou duas cenas revelou.
E já que se fala nisto, nunca me canso de dizer que gosto verdadeiramente da forma como Minghella filma os corpos de todos os seus actores.

Maria Brandão disse...

Não vi o filme, mas Expiação foi o único livro que beijei até hoje.

Sérgio Lavos disse...

beijar o livro... o amor mostra-se assim ,não é?
o que o meu deslumbramento é, perto desta dedicação...