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A Nova Escola de Berlim
31 Janeiro – 6 Fevereiro 2008 no Cinema São Jorge, Lisboa
Programação
O que resta, então, fazer? Continuando na técnica de fragmentação de um texto em pontos (tão fácil, tão fácil), deixar o livro descansado, depois de todo o esforço físico que fizemos para chegar ao fim do livro (rir cansa todos os músculos do corpo, ó se cansa); ou pegar na obra e tentar mostrar por outras palavras, diferentes e necessariamente mais fraquinhas do que as de Araújo Pereira, por que razão Boca do Inferno não é apenas mais um livro de crónicas escrito por um humorista – no meio da enxurrada de tentativas pouco sérias de fazer humor que, nos últimos anos, tem inundado as livrarias.
Decidi-me a fazer nenhuma das duas acima. Nem fiquei quietinho a um canto, pensando em todas as boas piadas que eu gostaria de ter escrito em vez do sacaninha de cabelo rapado, nem me atirei à vaca fria, encetando um vão ensaio para uma hermenêutica do humor pereirano. Será que há por aí professores de literatura que queiram levar a cabo tal tarefa? Não é difícil, e sempre seria coisa produtiva, irritar mais a azia crónica de Vasco Pulido Valente - “não gosto, não li, o Eça de Queiroz é muitas vezes superior, assim como um fulano que eu conheci em Oxford e limpava retretes no intervalo dos livros que escrevia”.
Uma crónica tem de ter técnica (e recuso-me a tentar produzir uma metáfora futebolística). Uma crónica tem de ter estilo. Uma crónica tem de conseguir conciliar técnica e estilo – ou o estilo será uma conjugação feliz de todas as boas regras da técnica? Não li suficientemente sobre o assunto (sim sou um leigo); para dizer a verdade, não li nada. Nem me apetece pensar um pouco sobre o caso, debruçar-me, correndo o risco de cair do parapeito, sobre o tema (e aí vão três sinónimos em três frases seguidas). O que me interessa, simplesmente, firmemente, é que o texto consiga atingir o seu pressuposto inicial. E qual é o pressuposto inicial de um texto do Ricardo Araújo Pereira? Que o leitor acabe por fazer figura de parvo em transportes públicos. Eu explico, em vários passos: primeiro, o leitor senta-se exactamente ao lado da loura de pernas descobertas e busto que podia estar mais encoberto (se fôssemos o João César das Neves). Que hajam não sei quantos mais lugares vagos na carruagem, é um pormenor. Segundo, retira (ou tira, segundo algumas versões) da mala um livro que não é o último do Miguel Sousa Tavares. Se ainda não tinha percebido, eu explico-lhe: você, caro leitor, está sentado ao lado de uma mulher que poderia ser a futura mãe dos seus filhos a ler um livro escrito pelo Ricardo Araújo Pereira. E, passados poucos segundos, a primeira gargalhada. Não ligue ao olhar de reprovação da loura. Desconfie antes quando ela se levantar e dirigir-se ao lugar no lado oposto da carruagem. E aproveite para tirar partido da sua figura ao máximo: revire os olhos, convulsione (existirá, este verbo), soluce, deixe que as lágrimas assomem aos olhos (bela imagem, de uma poeticidade intensa). Está feliz? Não, caro leitor, está fazer figura de parvo.
Quem me conhece sabe que quando me dou ao trabalho de explicar por que razão gosto de alguma coisa, o efeito atingido é necessariamente o oposto do pretendido; se digo: leiam autores nórdicos e vejam cinema europeu, sei que estou a convencer o meu interlocutor a embrenhar-se nos labirintos de Jorge Luis Borges e a passar umas boas horas a ver westerns da era clássica de Hollywood; o que me deixa satisfeito, porque no fundo era isso que eu pretendia fazer ao início. Conheço-me bem demais (já me aturo há trinta... hum, vinte e dois anos), por isso reitero: não leiam Boca do Inferno. A sério, sabiam que o Miguel Sousa Tavares publicou um livro há pouco tempo?
(Sabiam que este texto não é inédito, já foi publicado noutro blogue?)
[Sérgio Lavos]
Não há razão para pânico ou histerias. Não vale a pena correr a esconder para debaixo da mesa mais próxima, vender todas as acções em desespero ou deitar a toalha ao chão. As coisas mudam, mas nem sempre mudam para muito pior.
A situação aconselha prudência. Miguel Pais do Amaral vai compondo o ramalhete de editoras, qual apaixonada coleccionando declarações de pretendentes; os editores em pré-reforma engordam a conta bancária, embarcam na aposentação dourada para a qual trabalharam toda uma vida. (E quem os pode censurar, verdadeiramente?) Quem sobra nesta história de demandas quixotescas, negociações ferozes, batidas com a porta por parte de editores, lacrimejar de donzelas ofendidas, lamentações, choro e ranger de dentes?
Meus amigos, quem vai sofrer, quem já começou a sofrer, são as centenas de pessoas que foram e irão para as ruas durante os meses que se avizinham. A concentração empresarial e o monopólio têm o sabor de um whisky velho para quem vai enriquecendo e o gosto amargo do fel para quem desespera perante a possibilidade de desemprego. Não há razão para pânico ou histerias? Quem por lá tiver de passar, passará, alguém acha que pensa de modo diferente quem trata da vida de pessoas como se fossem “peanuts”? O caridoso coração de Pais do Amaral estremece ao ouvir os rumores de que um negócio gigantesco, no espaço de um ano ou dois, se prepara, entre ele e a Bertelsman. De bom-grado o empresário se dispôs a fazer o jogo sujo de angariar, cortar a eito (património, capital, pessoas) e depois compôr tudo muito bem composto para oferecer, em belo bouquet feito de prémio Nobel e do mais importante escritor de língua portuguesa (palavras do próprio), ao noivo alemão que colecciona editoras pelo mundo fora.
Falando claro: nenhum leitor exigente perderá com a concentração editorial. Haverá sempre espaço no mercado para projectos que visam editar primeiro por gosto. As notícias sobre a estagnação do mercado da edição são manifestamente exageradas; nos últimos anos são muitos as editores que realmente trouxeram algo de novo ao mercado (A Cavalo de Ferro, a Livros de Areia, A Ovni, todas as minúsculas editoras que continuam a albergar a poesia, como a Averno), e houve também a renovação de algumas editoras que já eram manifestamente importantes no mercado português, como a Assírio & Alvim, a Cotovia, a Fenda. É verdade que nos últimos tempos a vida dos pequenos editores não tem sido fácil: a entrada das grandes superfícies, incluindo a FNAC, no mercado, e a expansão dos grupos livreiros levou a que o poder de negociação destes últimos junto dos editores aumentasse exponencialmente, o que se traduziu em margens de comercialização bastas vezes incomportáveis para os editores. Mas também é verdade que a única razão para os livreiros terem conseguido forçar os descontos pretendidos foi a falta de um entendimento entre editores, foi a inexistência de uma associação de editores forte e unida, disposta a defender o dumping praticado pelas grandes superfícies. A lei do preço fixo seria uma óptima medida, se não vivêssemos em Portugal. Mas como a regra por cá é contornar chico-espertamente a lei, tornou-se norma vermos nos hipermercados livros com menos de 18 meses de edição com descontos astronómicos, e ninguém acusa ninguém. A ASAE serve mesmo para quê?
Num meio editorial onde as editoras de referência num passado recente (Asa, D. Quixote, Caminho, Gradiva) convivem lado a lado com os abortos editoriais que se foram instalando no mercado durante a última década, é de esperar o pior. Não é que, por exemplo, a D. Quixote, se salvaguarde do descalabro dos últimos anos, desde a saída de João Rodrigues (agora, na Sextante, outro exemplo de um excelente projecto editorial). Quando colocam à frente das empresas gente formada em Escolas Superiores Comerciais com um currículo assinalável na direcção das cadeias Lidl, sabe-se muito o que se pretende: baixar a fasquia, baixar, até se acabar editando potenciais best-sellers pelos quais se pagam milhares à cabeça e que acabam por redundar em flops, e, deste modo, deixar de publicar produtos de qualidade e sucesso garantido, como é o caso, por exemplo, dos outros quatro livros de Carlos Ruiz Záfon que precederam o sucesso de A Sombra do Vento (inexplicável). Resultado: o desastre e a consequente venda a alguém que se orgulha de ler, agora e sempre, um livro apenas: o de cheques.
Esperamos o pior, mas alguém há-de ocupar o lugar de referência das editoras que se afundam. Se Lobo Antunes sair da D. Quixote, alguém o há-de publicar. Como a Luísa Costa Gomes. Ou José Saramago, da Caminho. Ou Gonçalo Tavares.
Seria tão bom se todos fizessem como Rui Zink, que ao primeiro sinal de deriva da D. Quixote (Carolina e C.ª) abandonou o barco, indo parar à Teorema (que, curiosamente, também foi vendida a um grupo de investidores de contornos, no mínimo, nebulosos). Pessimismo? Apenas para quem achar que editar é como somar números numa calculadora. Os bons continuarão por cá.