30/01/08
28/01/08
Turistas e viajantes
Podemos fingir, cedendo um pouco à ilusão de conhecer. Em Barcelona, passeando entre "tourist spots" apinhados de gente com máquinas numa mão - digitais, que se perdeu para sempre a imagem do turista japonês de Nikon ao pescoço - e guia na outra, deparo com um breve (e ilusório) lapso da vida de quem pertence àquele lugar. Num parque com rampas para skaters, entalado entre prédios de cimento pouco típico e muito proletário, destaca-se um grupo, dois adolescentes e um homem mais velho. De início, não reconheço o objecto que o mais velho traz nas mãos. Dispõem-se em campo, o mais velho e um dos adolescentes frente-a-frente. O segundo saca do bolso uma bola de ténis e lança-a ao outro, que maneja o bastão de modo para mim inaudito. Coloca-o na vertical, amortecendo a pancada da bola, que ressalta e bate uma vez no chão antes de chegar às mãos do remetente inicial. Jogam cricket, entre muros, e o terceiro observa-os. São todos asiáticos, paquistaneses ou indianos. Em volta, os adolescentes catalães usando roupas largas e penteados trendy saltam nos skates, jogam à bola contra a parede do fundo, alguns com camisolas de Ronaldinho, Deco, Eto'o, vestidas. Os asiáticos, passado algum tempo, desistem do passatempo. E juntam-se a um grupo, começam a chutar uma bola de futebol de pé para pé, com mais ou menos talento para o jogo.
Ao afastar-me preferi não dar demasiada importância ao hiato de tempo que transcorreu naqueles breves minutos de actividade desportiva. Primeiro, o jogo dos pais e dos avós, a herança deixada pelos colonos que ocuparam o país durante 400 anos. Depois, o jogo do país onde nasceram, ou do país que os adoptou, tanto faz para o caso, acolhendo no seu património genético a nova terra que se entranha.
A conversa de integração não faz sentido nesta história. Eu era apenas um turista a caminho de mais um museu, sem qualquer desculpa para estar ali, na margem da cidade que visito.
Hoje, o grande tema é mais uma ameaça terrorista. Há canais de televisão que dizem que os suspeitos são jovens britânicos islâmicos, provavelmente asiáticos, como os do atentado no metro londrino, quem sabe como os adolescentes que vi jogando cricket em Barcelona. Não há espaço para moral nesta história. Os caminhos de um Homem são quase sempre um insondável mistério.
(Texto antigo recuperado alguns dias depois do que aconteceu em Barcelona)
[Sérgio Lavos]
23/01/08
Os outros
Os ignorantes divertem-me. E ensinam-me. Ensinam-me a humildade - eu confesso que me esforço para aprender. Vou aprendendo. Curando as aftas. Os furúnculos. (O resto nunca tive). Divertimento e sabedoria, uma tábua rasa pronta a receber todo o conhecimento do mundo - como não admirar a ignorância? Aprendemos mais do que ensinamos, e os arrogantes vão continuar a sofrer de achaques, a contorcer-se, a espumar de raiva, a empalidecer, a esticar o nariz até tocar no tecto, como focas, a modular a voz até se assemelhar a um trombone, uma longa nota, estridente e cava, que não tem maneira de acabar. Deixemos a purulência arrogante refastelar-se na sua própria bílis. Ganhar bolor. Apodrecer.
A ignorância é uma benção.
[Sérgio Lavos]
Cifra
Quem acabou por perder o sono, pelo menos durante algum tempo, fui eu. Ele voltou para a sua vida eterna, dia após dia, até se esquecer dos dias, e eu nunca mais voltei a vê-lo. Mas, de vez em quando, ele manda-me cartas. Nunca mails. Cartas. Longas missivas? Nem pensem, por duas razões: quanto mais curta a mensagem, mais possibilidade tem de ser importante; e porque escrevendo "longa missiva" estaria a cair num lugar comum. As cartas recordam-me que ele ainda não me esqueceu. E isso deixa-me feliz. Mas, infelizmente, a angústia, usando as serenas vestes da insónia, continua a guardar o meu leito.
Na última carta, falava-me daqueles que morrem jovens. Gente da minha idade, pouco mais velha, pouco mais nova, gente, e é aqui que eu quero chegar, que podia ser eu. Ninguém lamenta o desaparecimento de um velho; quando muito, elogiamos a sua vida, se foi um modelo ou deixou obra, admiramos a pessoa que foi. A morte é uma doença irreversível. Mas se derrota um velho, reconhecemos justiça no mundo. Quando, no seu voo, a morte rapina alguém que teria muito mais tempo de vida, lamenta-se, e de verdade, sem falsos sentimentos. Mas não há qualquer altruísmo nisto: medo, sim. Muito medo. A morte do outro é um pesadelo para nós: sabemos que não é real, mas pode a qualquer momento suceder. O pesadelo transformado em realidade.
Enquanto escrevia estas palavras, Deus tinha colocado o seu ar grave, sério. Falava verdade, e a nossa verdade (humana) dita pelo próprio Deus que alimentamos é um peso insuportável, não há verdade mais clara e mais certa. Eu reconquistei o sono, quando esqueci a recusa de Deus em ser o meu co-piloto (mas fui eu que recusei, não esquecer, fui eu - o espinho cravado). O tempo apaga tudo, mesmo oportunidades perdidas de negócio, parcerias para a vida. Neste momento, ou readmito Deus ao meu serviço, ou terei de pedir que deixe de me escrever cartas. Fale por sinais de fumo. Se mantenha calado, no seu retiro de mim. A verdade tem um rosto que eu não quero conhecer.
[Sérgio Lavos]
21/01/08
Estereótipos?
pois é precisamente aquilo que dizes ser diferente no pensamento de Judith Butler que me leva a afirmar que ela nunca sai do círculo vicioso dos géneros. Simplesmente questiono se será sensato combater a hegemonia da norma heterossexual (recuso colocar entre parêntesis o termo heterossexista porque este pressupõe um preconceito em relação à heterossexualidade), deslocando comportamentos sexuais que se fundam nas diferenças de género de um sexo para o outro - as gloriosas descrições que Butler faz dos rituais transgender não revolucionam, não derrubam estereótipos. A forma de luta que Butler escolheu para combater a hegemonia heterossexual passa pela afirmação do óbvio: que existem comportamentos associados ao sexo masculino e ao sexo feminino a que o ser humano nunca conseguirá escapar. Trocar as voltas às coisas, mudar as cadeiras de sítio, não elimina os hábitos de séculos, milénios. A terceira via não é coisa que interesse a Butler; um terceiro sexo que sublimasse os "constragimentos constitutivos" não é possível, se acreditarmos que sexo e género estão imbricados à nascença. Neste ponto, se aceitarmos o que Butler diz, o que será mais razoável: o combate pelo direito de perpetuar estes constragimentos culturais e biológicos, ou um que aceite as diferenças de sexo abolindo as diferenças de género? No fundo, aceitar que uma mulher possa ser feminina tendo o mesmo poder que um homem, ou um homem ser masculino sem que, por isso, se possa colocar a si próprio num patamar superior à mulher?
[Sérgio Lavos]
Gato escondido
Quem será? Resposta aqui.
[Sérgio Lavos]
20/01/08
Expiação
Vamos lá ver bem as coisas como elas são: a partir de um romance cujo tema é a criação, o próprio acto de escrita (um acto de amor), seria impossível produzir um filme que estivesse à altura do material original. A transcrição da história não seria suficiente para reproduzir todas as nuances da linguagem de McEwan, os diversos planos narrativos, as citações a outros autores, a perspectiva metaficcional a que McEwan se propõe. Se um romance nunca é a história que conta, pode muitas vezes parecê-lo (por isso, Hitchcock soube aproveitar obras menores e transformá-las em obras-primas do cinema). Mas em McEwan a linguagem não é um espartilho para a história; é o impulso para as diversas peripécias, o sopro que insufla as personagens.
E o que significa isto, quando transposto o portal que separa o mundo da literatura (composto de imagens que nascem no momento em que as palavras são lidas) do mundo do cinema (em que as imagens são oferecidas ao espectador, cerceando a imaginação a que um leitor é forçado)? Bom cinema, no caso de Joe Wright. As imagens que vemos são novas, e não porque o realizador se tenha afastado do enredo original; antes ilustrou, mas fê-lo de uma forma que não renunciou a um pensamento original, a boas ideias para solucionar os problemas colocados, no fundo a uma ideia de cinema. Os exemplos estão lá, para quem os quiser ver: o brilhante plano-sequência em Dunquerque (há quem tenha referido Kubrick, eu, exagerando, lembrei-me de A Sede do Mal, de Welles); os flashbacks inseridos cirurgicamente, sem que se perceba de imediato, criando uma ilusão de continuidade temporal, dois tempos diferentes que se fundem num só; a solução encontrada para mostrar o fundamento da história: o engano criminoso de Briony. A cena filmada através da janela, pelos olhos de Briony, e depois no exterior, do ponto de vista de Cecilia e Robbie. As fraquezas? Os actores principais, o inócuo James McAvoy e a sobrevalorizada (como actriz e mulher) Keira Knightley.
Expiação podia ser mesmo um épico romanesco tão marcante como O Paciente Inglês (não por acaso, Anthony Minghela aparece como actor neste filme, entrevistando na cena final uma Vanessa Redgrave a fazer de Briony envelhecida), se o cast tivesse sido diferente (penso em Rachel Weisz e Christian Bale, por exemplo). Descontando isto, e um ou outro pormenor desnecessário (a banda-sonora a intrometer-se nas imagens, as cabeças cortadas em alguns enquadramentos), acaba por ser um bom filme, que merece o esforço que possa fazer para gostar dele - foi assim que comecei a admirar O Paciente Inglês e O Fiel Jardineiro, não seria coisa nova.
Querer que os críticos leiam o romance de McEwan é esperar muito. Que diminuam o filme, colocando-o na extensa prateleira das adaptações literárias de época, não se entende. Não se pretendia originalidade. Apenas alguma fidelidade ao espírito da obra adaptada. E a melhor maneira de conseguir isso é filmar bem, com mão virtuosa. Joe Wright, se não o consegue totalmente, fica muito perto. Seria difícil melhor. (Barry Lindon é um caso à parte).
[Sérgio Lavos]
Simone, a escandalosa
Longa vida a Simone de Beauvoir, vestida ou despida, na intimidade ou nos livros - e a simetria das duas enumerações é propositada; nada pode ser mais erótico do que uma mulher que pensa. O pensamento como motivo de escândalo. Um pecado.
[Sérgio Lavos]
15/01/08
Ainda a crítica (2)
Gosto de ver o José Mário Silva a concordar com um amigo. E gosto de ver que estamos os três de acordo: acho Manuel Gusmão um dos melhores poetas aparecidos na última década, admiro os seus ensaios e leio sempre os seus textos para o Ipsilon. A questão não era essa; era saber até que ponto o grupo a que Francisco Frazão gostaria de pertencer não poderia ser alargado a mais gente. O tom ensaístico que Gusmão exibe nas suas recensões é de uma lucidez impressionante (mas, confesso, pouco cativante em termos de estilo, ao contrário, por exemplo, de Joaquim Manuel Magalhães ou António Guerreiro). Mas importa que o leitor menos exigente perceba o que o crítico quer dizer. Utilizar termos que vêm da teoria literária em textos publicados num jornal não me parece ser a melhor forma de cativar leitores para a leitura de textos muitas vezes menos densos que o texto que deles fala. Eu percebo que Manuel Gusmão escreva assim; é esse o seu treino, é essa a sua formação. Mas será o espaço apertado (cada vez mais) de uma recensão de jornal o local certo para fazer análise literária? Dúvidas, confesso, dúvidas, e Francisco Frazão não as elucida ao comparar Pedro Mexia a Manuel Gusmão. Percebe-se à distância que a formação e a intenção de Pedro Mexia, enquanto crítico literário, é oposta à de Manuel Gusmão. Menos exigente? De modo algum, apenas mais claro, menos interessado em utilizar o jargão académico aprendido nos cursos de literatura.
Mas admito que tudo isto seja subjectivo. Como também sei que nenhum potencial futuro leitor se perde na floresta barroca que enfeita a crítica produzida por Manuel Gusmão. Que interesse poderá ter escrever apenas para o salão de medíocres? Eu respondo: todo, cada um é livre de escrever para quem quiser. Mas, por favor, evitem justificar o elitismo com a ignorância dos que não pertencem ao grupo.
[Sérgio Lavos]
14/01/08
Autofagia
[Sérgio Lavos]
11/01/08
M.I.A.
M.I.A. não é o nome de uma agência de espionagem. Não é alta cultura (literatura, música clássica, Pina Baush e afins) nem baixa. Digamos que entre alta e baixa cultura, temos M.I.A. Não é pop xunga, mas tem batidas que fazem lembrar os maiores êxitos da música turca; não é europop, mas por vezes ameaça com uns violinos que se aproximam da melhor música festivaleira; e também não é uma banda-sonora de Bollywood, apesar do tom da pele e dos arranjos de gosto duvidoso que enfeitam as batidas grime de influência urbana londrina. M.I.A. aprimorou-se numa coisa: a escolha da roupagem, do guarda-roupa. Quem conhece o vídeo de Galang, do primeiro álbum, sabe do que falo (também notável pelo reportório completo de maneiras esquisitas de dançar que a cantora exibe). A linguagem caleidoscópica dos fatos de treino comunica com o telespectador de maneiras nunca antes vistas. Imagine-se a mistura de cores dos saris indianos (ou do Sri lanka, de onde ela é originária) com o corte da moda de rua inglesa. E agora transporte-se isto para a música que M.I.A. produz. Não encontro melhor analogia.
Paper Planes é o mais recente single do último álbum, Kala, um dos melhores do ano passado, e para além do sample sacado aos Clash, tem a curiosidade de mostrar dois respeitáveis músicos de uma menos que respeitável banda a serem servidos por M.I.A. Quem são? - respostas na caixa de comentários. Para além disso, o vídeo tem outra curiosidade menos agradável: o som de tiros que se ouve no refrão foi cortado na versão que passa nas televisões americanas. Land of the free? Sri Lanka.
[Sérgio Lavos]
10/01/08
Tântalo
a bajulação ainda te leva a algum lado. Atormentado? Eu. Eu próprio. Sabes, é que, neste momento, escrevo. Estou a escrever. Estou escrevendo. Estou a teclar palavras. Tentar que estas palavras transmitam ideias, sensações, emoções. Vou escrevendo. E, lamentavelmente, corro o risco de usar as mesmas palavras que Camilo Castelo Branco usou, de que Eça abusou, as mesmas palavras do Pessoa, do Herberto. Nem por isso escrevo o mesmo que o Camilo, que o Eça, que o Pessoa, que o Herberto. Escrevo o mesmo mas nunca conseguirei escrever o mesmo. Do que eles. Não escreverei o que eles escreveram. Mas estou condenado a lê-los. A relê-los. A percorrer os olhos pelas palavras que eles deixaram, e descobrir, a cada leitura, a evidência de que eles se expressavam na mesma língua do que eu. O meu suplício é superior ao de Tântalo - ele pelo menos conseguia ver aquilo que não poderia alcançar. Eu nem isso - não entendo o mecanismo do génio, a sua origem. Todos os que escreveram antes de mim me perseguem. Leio assombrado por uma maldição de contornos masoquistas. Quero lá saber de tudo o que não li nem lerei! Chega-me o que leio diariamente.
Atormentado, eu?
[Sérgio Lavos]
Jesse James
As referências cinematográficas são muitas, criando um pastiche de diversos géneros: o enquadramento central da porta para o exterior de Ford; o sossego de um campo de feno de Malick; as paisagens brancas cobertas de neve dos Cohen [substituindo os desertos típicos]; a nível narrativo, é um pouco ingénuo, caindo mesmo na armadilha habitual da adaptação de livros: o narrador vai contando a história, repetindo o que já é evidente só pelas imagens. Mas, cumpre na perfeição o que é necessário para criar um ambiente onírico ao modo de Malick: todos os pormenores foram captados, a passagem das nuvens, as partículas de luz, a mínima poeira, etc.
Casey Affleck consegue fazer com que a personagem de Robert Ford, um verdadeiro totó de voz esganiçada e insegura, não ultrapasse os limites do aceitável. Incrivelmente, Sam Sheppard desaparece passados 20 minutos (tem apenas um pequeno papel no início, quando o grupo prepara o último assalto).
Mas este Jesse James tem uma temporalidade, ou um modo suave de duração (do olhar que tem tempo para observar), o modo com que Andrew Dominik vai contando a história de Jesse e de Robert, digno de nos levar ao cinema. A cena inicial é de longe a minha favorita [não só porque os comboios fazem parte de um imaginário pessoal ( não só nos westerns)], graças ao contraste entre a escuridão e a luz; quando o comboio chega, primeiramente anunciado nos carris, vai iluminando o bosque e enche de fumo a floresta onde aguardam os assaltantes. O mérito vai todo para a imagem de Roger Deakins e para Jesse James que, segundo Ron Hansen (o autor do livro), continua a dar lucro.
[Susana Viegas]
07/01/08
Um pouco de aritmética
[Sérgio Lavos]
Mais um chupista
[Sérgio Lavos]
Boca do Inferno
O que resta, então, fazer? Continuando na técnica de fragmentação de um texto em pontos (tão fácil, tão fácil), deixar o livro descansado, depois de todo o esforço físico que fizemos para chegar ao fim do livro (rir cansa todos os músculos do corpo, ó se cansa); ou pegar na obra e tentar mostrar por outras palavras, diferentes e necessariamente mais fraquinhas do que as de Araújo Pereira, por que razão Boca do Inferno não é apenas mais um livro de crónicas escrito por um humorista – no meio da enxurrada de tentativas pouco sérias de fazer humor que, nos últimos anos, tem inundado as livrarias.
Decidi-me a fazer nenhuma das duas acima. Nem fiquei quietinho a um canto, pensando em todas as boas piadas que eu gostaria de ter escrito em vez do sacaninha de cabelo rapado, nem me atirei à vaca fria, encetando um vão ensaio para uma hermenêutica do humor pereirano. Será que há por aí professores de literatura que queiram levar a cabo tal tarefa? Não é difícil, e sempre seria coisa produtiva, irritar mais a azia crónica de Vasco Pulido Valente - “não gosto, não li, o Eça de Queiroz é muitas vezes superior, assim como um fulano que eu conheci em Oxford e limpava retretes no intervalo dos livros que escrevia”.
Uma crónica tem de ter técnica (e recuso-me a tentar produzir uma metáfora futebolística). Uma crónica tem de ter estilo. Uma crónica tem de conseguir conciliar técnica e estilo – ou o estilo será uma conjugação feliz de todas as boas regras da técnica? Não li suficientemente sobre o assunto (sim sou um leigo); para dizer a verdade, não li nada. Nem me apetece pensar um pouco sobre o caso, debruçar-me, correndo o risco de cair do parapeito, sobre o tema (e aí vão três sinónimos em três frases seguidas). O que me interessa, simplesmente, firmemente, é que o texto consiga atingir o seu pressuposto inicial. E qual é o pressuposto inicial de um texto do Ricardo Araújo Pereira? Que o leitor acabe por fazer figura de parvo em transportes públicos. Eu explico, em vários passos: primeiro, o leitor senta-se exactamente ao lado da loura de pernas descobertas e busto que podia estar mais encoberto (se fôssemos o João César das Neves). Que hajam não sei quantos mais lugares vagos na carruagem, é um pormenor. Segundo, retira (ou tira, segundo algumas versões) da mala um livro que não é o último do Miguel Sousa Tavares. Se ainda não tinha percebido, eu explico-lhe: você, caro leitor, está sentado ao lado de uma mulher que poderia ser a futura mãe dos seus filhos a ler um livro escrito pelo Ricardo Araújo Pereira. E, passados poucos segundos, a primeira gargalhada. Não ligue ao olhar de reprovação da loura. Desconfie antes quando ela se levantar e dirigir-se ao lugar no lado oposto da carruagem. E aproveite para tirar partido da sua figura ao máximo: revire os olhos, convulsione (existirá, este verbo), soluce, deixe que as lágrimas assomem aos olhos (bela imagem, de uma poeticidade intensa). Está feliz? Não, caro leitor, está fazer figura de parvo.
Quem me conhece sabe que quando me dou ao trabalho de explicar por que razão gosto de alguma coisa, o efeito atingido é necessariamente o oposto do pretendido; se digo: leiam autores nórdicos e vejam cinema europeu, sei que estou a convencer o meu interlocutor a embrenhar-se nos labirintos de Jorge Luis Borges e a passar umas boas horas a ver westerns da era clássica de Hollywood; o que me deixa satisfeito, porque no fundo era isso que eu pretendia fazer ao início. Conheço-me bem demais (já me aturo há trinta... hum, vinte e dois anos), por isso reitero: não leiam Boca do Inferno. A sério, sabiam que o Miguel Sousa Tavares publicou um livro há pouco tempo?
(Sabiam que este texto não é inédito, já foi publicado noutro blogue?)
[Sérgio Lavos]
06/01/08
Luiz Pacheco (1925-2008)
[Sérgio Lavos]
04/01/08
Mais uma ou duas coisas
[Sérgio Lavos]
P.S.: Custava muito deixares um link permanente nos posts? Julgas que és o Pacheco Pereira, ou quê?
Coleccionismo para totós (2007 revisto)
Não há razão para pânico ou histerias. Não vale a pena correr a esconder para debaixo da mesa mais próxima, vender todas as acções em desespero ou deitar a toalha ao chão. As coisas mudam, mas nem sempre mudam para muito pior.
A situação aconselha prudência. Miguel Pais do Amaral vai compondo o ramalhete de editoras, qual apaixonada coleccionando declarações de pretendentes; os editores em pré-reforma engordam a conta bancária, embarcam na aposentação dourada para a qual trabalharam toda uma vida. (E quem os pode censurar, verdadeiramente?) Quem sobra nesta história de demandas quixotescas, negociações ferozes, batidas com a porta por parte de editores, lacrimejar de donzelas ofendidas, lamentações, choro e ranger de dentes?
Meus amigos, quem vai sofrer, quem já começou a sofrer, são as centenas de pessoas que foram e irão para as ruas durante os meses que se avizinham. A concentração empresarial e o monopólio têm o sabor de um whisky velho para quem vai enriquecendo e o gosto amargo do fel para quem desespera perante a possibilidade de desemprego. Não há razão para pânico ou histerias? Quem por lá tiver de passar, passará, alguém acha que pensa de modo diferente quem trata da vida de pessoas como se fossem “peanuts”? O caridoso coração de Pais do Amaral estremece ao ouvir os rumores de que um negócio gigantesco, no espaço de um ano ou dois, se prepara, entre ele e a Bertelsman. De bom-grado o empresário se dispôs a fazer o jogo sujo de angariar, cortar a eito (património, capital, pessoas) e depois compôr tudo muito bem composto para oferecer, em belo bouquet feito de prémio Nobel e do mais importante escritor de língua portuguesa (palavras do próprio), ao noivo alemão que colecciona editoras pelo mundo fora.
Falando claro: nenhum leitor exigente perderá com a concentração editorial. Haverá sempre espaço no mercado para projectos que visam editar primeiro por gosto. As notícias sobre a estagnação do mercado da edição são manifestamente exageradas; nos últimos anos são muitos as editores que realmente trouxeram algo de novo ao mercado (A Cavalo de Ferro, a Livros de Areia, A Ovni, todas as minúsculas editoras que continuam a albergar a poesia, como a Averno), e houve também a renovação de algumas editoras que já eram manifestamente importantes no mercado português, como a Assírio & Alvim, a Cotovia, a Fenda. É verdade que nos últimos tempos a vida dos pequenos editores não tem sido fácil: a entrada das grandes superfícies, incluindo a FNAC, no mercado, e a expansão dos grupos livreiros levou a que o poder de negociação destes últimos junto dos editores aumentasse exponencialmente, o que se traduziu em margens de comercialização bastas vezes incomportáveis para os editores. Mas também é verdade que a única razão para os livreiros terem conseguido forçar os descontos pretendidos foi a falta de um entendimento entre editores, foi a inexistência de uma associação de editores forte e unida, disposta a defender o dumping praticado pelas grandes superfícies. A lei do preço fixo seria uma óptima medida, se não vivêssemos em Portugal. Mas como a regra por cá é contornar chico-espertamente a lei, tornou-se norma vermos nos hipermercados livros com menos de 18 meses de edição com descontos astronómicos, e ninguém acusa ninguém. A ASAE serve mesmo para quê?
Num meio editorial onde as editoras de referência num passado recente (Asa, D. Quixote, Caminho, Gradiva) convivem lado a lado com os abortos editoriais que se foram instalando no mercado durante a última década, é de esperar o pior. Não é que, por exemplo, a D. Quixote, se salvaguarde do descalabro dos últimos anos, desde a saída de João Rodrigues (agora, na Sextante, outro exemplo de um excelente projecto editorial). Quando colocam à frente das empresas gente formada em Escolas Superiores Comerciais com um currículo assinalável na direcção das cadeias Lidl, sabe-se muito o que se pretende: baixar a fasquia, baixar, até se acabar editando potenciais best-sellers pelos quais se pagam milhares à cabeça e que acabam por redundar em flops, e, deste modo, deixar de publicar produtos de qualidade e sucesso garantido, como é o caso, por exemplo, dos outros quatro livros de Carlos Ruiz Záfon que precederam o sucesso de A Sombra do Vento (inexplicável). Resultado: o desastre e a consequente venda a alguém que se orgulha de ler, agora e sempre, um livro apenas: o de cheques.
Esperamos o pior, mas alguém há-de ocupar o lugar de referência das editoras que se afundam. Se Lobo Antunes sair da D. Quixote, alguém o há-de publicar. Como a Luísa Costa Gomes. Ou José Saramago, da Caminho. Ou Gonçalo Tavares.
Seria tão bom se todos fizessem como Rui Zink, que ao primeiro sinal de deriva da D. Quixote (Carolina e C.ª) abandonou o barco, indo parar à Teorema (que, curiosamente, também foi vendida a um grupo de investidores de contornos, no mínimo, nebulosos). Pessimismo? Apenas para quem achar que editar é como somar números numa calculadora. Os bons continuarão por cá.
(Texto publicado inicialmente no Arte de Ler)
[Sérgio Lavos]
Ainda a crítica
apesar de não parecer - parece, de resto, uma crítica muito séria - penso que João Bonifácio se refere a Manuel Gusmão, neste excerto, em termos, no mínimo, sarcásticos. O ponto dele é simples: se o Manuel Gusmão pode, e é elogiado por isso, também ele pode produzir "uma verborreia inenarrável de referencialidade abusiva exclusivamente centrada em maus poetas e escrita apenas e só para gáudio onanístico de um pequeno salão de medíocres." Ou não? Ou o que Manuel Gusmão escreve é mesmo decisivo para o entendimento e consequente compra do livro recenseado? Lá beleza tem, sem dúvida - e ele, sem ironia, é um grande poeta. Mas adequar-se-à ao meio - um suplemento de jornal - em questão? É que, vamos lá ver, o outro exemplo citado, o Pedro Mexia, é o oposto, em estilo, em influências, do Manuel Gusmão - escreve claro, sem rodriguinhos de subjectividade e sempre a tentar escapar a qualquer referencialidade nebulosa; capaz de, imagine-se, falar da história que um romance conta ou, pior ainda, referir dados biográficos quando fala do autor do livro. Em que pé é que estamos? Poderá um crítico musical escrever como um poeta sem cair no ridículo?
(Não sabia que o "entusiasmo" se pode fingir?)
[Sérgio Lavos]
03/01/08
A melhor época das listas
Poderia concordar ou discordar com tantas listas, não trago nada de novo. Como Jim Jarmusch disse, todo o cinéfilo gosta de listas e estamos na época delas. Poderia falar dos melhores filmes de 2007, de Half Nelson ou Inland Empire, das músicas que mais ouvi, dos Beirut ou dos LCD, do melhor vídeo, dos Battles, das melhores séries para um serão em família, House ou Dexter, mas prefiro voltar a eles, aos Radiohead. Para além do mais, têm novo vídeo ainda do ano velho. Nude.
Até poderia falar da maior surpresa, do que nunca me passaria pela cabeça vir a acontecer, ouvir as palavras de David Lynch sobre criação artística e meditação transcendental.
[Susana Viegas]
02/01/08
O sentido da vida
[Sérgio Lavos]
Anúncio ao público
[Sérgio Lavos]
Eu, pecador, me confesso
[Sérgio Lavos]