29/09/06

Livro

Imaginemos: um livro muda de aparência duplamente; quando desligamos as luzes de casa e lhe apontamos directamente uma lanterna a partir de várias posições; quando pegamos nele e o seguramos contra a lanterna, estando esta fixa a um ponto qualquer no espaço.
A mancha de luz vai cobrindo e descobrindo. Num momento, a penumbra alastra sobre o título, antes visível. Deixamos de identificar o livro, esquecemos. Agora olhamos para a contracapa, um parágrafo elogiando o admirável feito do escritor. Letras a negrito, uma frase destacada mais abaixo: "O leitor aceitará este convite com segundas (e terceiras) intenções?" A sombra volta a mudar de lugar, a lombada: letras douradas, um título apenas, um artigo definido, um substantivo e um adjectivo. O último atribui ao segundo um valor temerário, o primeiro restringe o sentido do conjunto dos outros dois. A luz desloca-se lentamente, abrimos o livro, a primeira página em branco, a ficha técnica, novamente o título, por baixo o autor, a data. Saltam rapidamente as folhas e entramos na obra.
Saímos da obra muitos dias, muitas semanas, muitos meses depois. E anos mais tarde o livro volta às nossas mãos. A capa foi-se gastando, os cantos estão dobrados e as rugas que o papel ganhou são impossíveis de disfarçar. Por dentro, o corpo cedeu sem regresso; o papel amarelo diluiu a nitidez dos caracteres, a cinza do lápis foi engolida pelas frases que sublinhava em tempos. O nomes estão lá ainda: o título, o autor. Mas a vida que lá repousa é outra, uma que teima em colocar-se do outro lado da porta que tentamos em vão abrir em sonhos. A vida de agora resguarda-se no alpendre de entrada e ajuda os visitantes a entrar em casa. Hoje, entramos, e a luz que incide está fixa e mudamos a posição do livro na sala, à procura do ângulo certo, das coordenadas exactas onde situar as letras. Da história que conhecíamos, lemos vestígios, sombras. Mas reparamos em palavras onde a luz nunca tinha entrado. A mão que segura a lanterna é um tentáculo de um monstro desconhecido.

[Sérgio Lavos]

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