21/09/06

K.

Está tudo muito bonito, sim senhor, mas a verdade é que basta pegar num livro qualquer de Kafka para que todas as ideias - belas, erradas e tão cómodas - que temos sobre Deus e os anjos e a metafísica (não confundir com patafísica) venham por aí baixo, a toda a brida, num imparável carreiro de auto-destruição. Entre-se n'O Castelo, por exemplo. Não se pode, dir-se-á. Certo, não podemos. K. nunca chega a entrar. K. anda por ali, enterrado em neve a maior parte do tempo, servindo de bola de pingue-pongue entre cidadãos ciosos do seu lugar na hierarquia da aldeia. Entramos no livro, e já K. lá está, com um objectivo muito preciso: entrar no Castelo. Note-se, ele nunca deixa de ter uma ideia fixa, uma meta viável, um destino perfeitamente definido. E luta, esbraceja, pergunta, desdenha do rigor obstruso, investe temeroso contra a implacável máquina repressiva da burocracia existencial. Entra e sai de casa, caminha, aguarda os senhores do Castelo, escreve cartas, envia mensagens, ouve reprimendas, irrita-se com a passividade de toda a gente. Mas não entra. Caramba, não entra!
Kafka escrevia sabendo que nunca poderia parar de escrever. Escrevia e escrevia sem fim à vista, sem a palavra "fim" à vista, a obra de Kafka é um conjunto de fragmentos inacabados que se repetem na sua natureza. E a forma que as histórias fragmentadas tomam imitam o carácter dos próprios escritos. As personagens sabem que nunca irão conseguir transcender a infinita impotência que exibem. Se isto não nos diz nada acerca de Deus, não sei o que possa dizer.

[Sérgio Lavos]

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