Bob Dylan, empenhado civicamente no confronto entre passado e presente, afirmou numa entrevista a propósito do novo álbum, "Modern Times", que não há gravações que se aproveitem nos últimos vinte anos. Duas questões: desconfio da tradução que vi em alguns jornais, ou pelo menos da interpretação abusiva. Se o original é "recordings", Dylan podia-se estar a referir à qualidade técnica dos discos e à produção dos mesmos, o que é completamente diferente do entendimento que quiseram dar à frase. De qualquer modo, as faixas que eu conheço deste álbum dão força à interpretação mais radical das palavras de Dylan. Sempre foi assim, de resto. Quem não viveu a época e aprendeu a gostar de Dylan num tempo em que o desencanto tomou conta de tudo compreende bem a amargura cínica de Dylan. Terá pouco a ver com a idade. Não será um exagero achar que músicas com "The Times They Are A-Changin'" conseguem juntar em doses iguais deslumbramento com o presente e saudades de um tempo que passa, apesar da revolução, dos costumes e musical, de que Dylan foi um dos maiores símbolos. O sentimento de errância e perdição que Dylan sempre cantou surgirá amenizado - consequência normal do envelhecimento -, e a aceitação serena do mundo e de si próprio, apesar do referido cinismo, distancia-se irremediavelmente da rebeldia controlada dos anos 60. O conservadorismo pode surgir nos lugares e nas pessoas mais incomuns. Quando Dylan electrificou a música folk, os cantores de protesto reagiram de forma enérgica contra a revolução; agora, Dylan reclama contra os "tempos modernos" fazendo um disco de outra era, saudosista ou clássico, dependendo do ponto-de-vista que decidimos escolher. Quem poderá não ser conservador aos sessenta anos?
Não irei deixar a tocar nenhuma faixa do novo álbum, apesar de elas estarem perfeitamente acessíveis na Internet. Partilho de modo apaixonado a reflexão de David Fonseca, hoje no suplemento 6ª, do DN, sobre a modernidade que se esquece do tempo obrigatório de respiração que cada obra-de-arte deve ter. A acessibilidade e a facilidade que a Internet permite não são necessariamente um bem, não são obrigatoriamente progresso. Quantos dos que lêem este texto se dão ainda ao trabalho de dirigir-se a uma loja de discos, ouvir com atenção o que está em escuta, procurar novidades, admirar as capas dos cd's, comprar dois ou três álbuns e avaliar devidamente o som produzido, as faixas na ordem em que são apresentadas, uma duas, três vezes, até que cada pormenor comece a fazer sentido, cada instrumento se evidencie por si próprio, de maneira a que no final se possa apreciar o álbum como um todo, e não música a música, num Ipod ou nos programas de partilha de ficheiros; quantos ainda se dão ao trabalho de ouvir música da forma tradicional, aquela de que Dylan se reclama herdeiro desiludido? "The Times They are A-Changin'", rima irónica com o título do novo álbum - aquele era o tempo que mudava, este é tempo que mudou. Desencanto, disse?
[Sérgio Lavos]
[Sérgio Lavos]
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