31/08/06

Memória e poesia

Peguei no livro de Luís Miguel Nava a meio de uma conversa sobre nada - pretendia exemplificar de que modo o Homem se perde no mundo preparando a partida de si próprio. A ontologia do viajante. Al Berto, que deve ter tocado a mesma areia por onde Luís Miguel Nava andou - apesar da inconstância do deserto - talvez nunca se tivesse apercebido da plena posse do seu corpo até a doença o tocar com os seus dedos frios. Nava não. Desde muito cedo se percebe nos seus poemas um rumor de relâmpago, como se a luz que ele evocava tivesse como destino último as entranhas que ele parecia - erroneamente - dispor ao uso do mundo. Num número relativamente recente da revista "Relâmpago" dedicado ao poeta, vários amigos falam da coincidência entre os factos da vida e os factos da poesia. Julgo haver alguém que sugere existir um apelo quase consciente de Luís Miguel Nava no sentido que a sua existência acabou por tomar. Um certo gosto pela marginalidade - e aqui não se pode deixar de censurar tal pensamento: quem lê os seus poemas mais solares entende o poeta de outra forma, distante dessa alusão baixa.
Luís Miguel Nava percorreu desde a infância o caminho onde leva a sombra; a casa onde cresceu era o lugar onde a luz se estendia de modo absoluto. E aproximava-se por vezes de Eugénio de Andrade. Mas a memória não permite que o rio flua com a mesma limpidez que possui na nascente. No texto que transcrevo, a casa está tão entranhada no poeta que tomou conta de tudo. A infância uma sombra cobrindo o presente.
No dia seguinte a esta conversa, reencontrei um colega que não via há longo tempo. E foi como se a infância, em vez de regressar, me assombrasse as memórias puras que dela mantenho. A realidade raramente coincinde com a ideia que dela fazemos. E o passado nunca será tão verdadeiro como a memória que dele temos. A poesia ajuda-nos a perceber estas coisas tão simples.

[Sérgio Lavos]

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