Catalogar as minhas preocupações era o melhor modo de caçar a insónia. Dedicava-me com um certo carinho a esse ofício, construía nas sombras túneis, suficientemente largos para as gordas toupeiras do desassossego se instalarem. E elas não declinavam o convite. Cruzavam a noite a meu lado, presas num desvelo que noutra situação se poderia achar comovedor; não lhes concedia essa fraqueza, contudo. Mas também não lhes ganhara medo, nem raiva, nem despeito. Muito depois, pensei mesmo que no fundo acabara por aceitar a sua presença, a sua familiaridade nervosa e o calor que delas subia. Julgam portanto que conhecia Kafka e os seus terrores nocturnos? Mentira, lamento. As toupeiras, no entanto, sabiam-no de cor; foram muitas as vezes que as apanhei a descansar numa das salas folheando as páginas serenamente, sem pressas. Desconhecia os livros que elas liam. A mim interessava-me encher o meu catálogo de inutilidade e desconcerto, aprendia a não esquecer, como um insecto pousado na pele a sugar o sangue. Morte, alinhada em colunas, avançando pelas páginas que se sucediam no espírito, números multiplicando a sua ferocidade pela minha vida fora. Gente que morreu, gente que morre, gente que irá morrer, sem tréguas. Um dia, aprendi a adormecer. Numa sala longínqua construída em tempos mais felizes, oito toupeiras, alinhadas num círculo imperfeito (tendendo para uma espiral concêntrica), jaziam quietas e viradas para o lado solar da rede de túneis. Mortas, todas mortas, os dentes ainda muito brilhantes no escuro. Mas eu não as via; caíra num sono sem memória da queda no sono, como todos os bons sonhos devem ser.
[Sérgio Lavos]
[Sérgio Lavos]
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