Ah, gosto deste tempo em que os dados são atirados ao ar e caem nas mesas erradas, este tempo desprovido de certezas e em que a cada dia o certo se pode tornar errado, e o errado certo, o tempo em que o cinzento é uma cor baça e o preto e o branco vão trocando de rosto sem aviso. Que delírio é ver esquerdistas serem acusados de anti-semitismo, direitistas defendendo causas de esquerda - o estabelecimento de uma pátria judaica segura - conservadores idealistas e idealistas ex-revolucionários afirmando-se, de pés bem-assentes no chão, conservadores. O deleite que é assistir a revoluções ditadas por bombas limpas que eliminam ao milímetro e invasões lançadas por bombas cegas que arrasam terroristas e inocentes. O prazer que me dá ouvir proclamações de vitória de ambos os lados de um conflito mitigado por - imagine-se - fervorosos (e falsos) pacifistas com interesses evidentes em desfechos rápidos. O gozo que sinto lendo colunistas reafirmando o seu apego à paz no mesmo parágrafo em que defendem a guerra, comentadores apelando à resistência armada no mesmo fôlego em que se fundam como pacifistas dos sete costados. A caturrice que é assistir de cadeira a moralistas revelarem que também pecaram, que à juventude tudo se pode perdoar, até a militância extremosa em organizações pouco estimadas. Tudo revolteia e se tece em doce ideologia, a tese e o seu contrário confundem-se num bailado de sombras e cortinas de fumo escondendo o teatro lá ao fundo, onde verdadeiros actores representam para a extensa plateia os seus dramas diários, virtuais protagonistas que vivem e morrem apenas para que milhões de linhas sejam diariamente escritas e publicadas em jornais, blogues, televisões, livros. Como não gostar deste tempo em que cada assunto morre ao bater na areia da praia, onda após onda desfazendo-se num novelo de espuma e esquecimento, o voraz instrumento da História?
[SL]
[SL]
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