Mais que dizer Marilyn, dizer mulher. Não seria assim o verso de Ruy Belo, nem interessa agora evocar o poema tantas vezes repetido. No mês em que Marilyn Monroe morreu, ainda bem que o 2º canal decidiu fazer um ciclo de filmes com ela. Falta talvez o mais simbólico, "Quanto Mais Quente Melhor", provavelmente a melhor comédia de sempre, mas compreende-se o critério. Seria necessário ver e rever todos os filmes em que Marilyn entra para perceber que ela não era apenas a "mulher mais bela do mundo"; era uma excelente atriz de comédia, que assumia o risco da auto-paródia e da repetição de papéis de loura bela e burra que os produtores gostavam de lhe dar, era também uma profissional que, a partir de certa altura, começou a aventurar-se noutros registos, apesar das reticências dos patrões da indústria. Não se podia queixar, de resto, das agruras de Hollywood; o seu percurso, de pin-up de calendário ruiva a estrela de uma época marcada pela guerra do Vietname e pela iminente revolução sexual, seria um sonho tornado realidade - e depois pesadelo. Em Mulholland Drive, David Lynch constrói uma abstracção à volta do sonho de Hollywood, e de como ele atrai, como um abismo, quem se aproxima. Marilyn, como Betty (Davis?), não resistiu ao vórtice. No filme de Lynch, a posição do corpo de Betty/Diane depois de morta, apesar do horror, transmite uma serenidade trágica. Como Marylin, podemos imaginar. Mas recuemos no close-up, regressando a Lynch. Hollywood é uma quimera de histórias à espera de serem filmadas; o veio que Lynch aproveitou é abundante. Em "Paragem de Autocarro", Marilyn não se abstém de fantasiar sobre a sua própria condição, sobre a sua própria história. Cherie, nome imaginário (interessa saber qual o verdadeiro?), traça no mapa o seu percurso em direcção a Hollywood, vinda de uma terra perdida nos confins da América. Encontramo-la num bar de quinta categoria, servindo bebidas a cowboys e cantando um número de cabaret canhestro e paródico, depois de ter ficado em segundo lugar num concurso de talentos (atrás de um conjunto de malabaristas com garrafas de leite vazias). Como Betty em "Mulholland Drive". Marilyn sabia cantar e dançar, mas Cherie não. É apenas um "anjo", descoberto por um cowboy de modos rudes, mas ingénuo, que pretende laçá-la e levá-la para casa, como se fosse um bezerro. Ela acaba por ceder, quando ele mostra ser mais do que o bruto que aparenta - e o amor é, apesar de tudo, genuíno. Na vida de Marilyn, a realidade não imita (esta) ficção. Ninguém conseguiu domesticar Marilyn. Não interessa saber porquê, talvez seja difícil amar alguém que se pode chamar apenas "mulher". A perfeita encarnação do arquétipo.
Marilyn, em "Os Homens Preferem as Louras". O número da música "Diamonds Are a Girl's Best Friends". E a sua pálida cópia mais tarde no filme, por Jane Russell. O original, com Marilyn, é perfeito. Sensualidade despontando em cada canto do cenário, do corpo, da voz. A maior parte dos filmes com Marilyn são maus. Mas o milagre de cada aparição vale a pena. Em vez de marilyn, Mulher.
[Sérgio Lavos]
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