Entre recordar e esquecer, aposta-se o valor da História. E recordar é sobretudo registar os acontecimentos e as suas consequências. De outro modo, recorrendo a construções mentais da memória, cria-se um mundo diferente daquele que aconteceu. Quem tem acesso a estes registos da História, às linhas criadas pela estatística, aos nódulos formados pelas datas importantes, às dobras no tecido da dimensão temporal provocadas pelas grandes catástrofes da Humanidade? Quem lê, quem aprende, quem apreende o real valor do conhecimento. Apenas os que distinguem informação de conhecimento se incluem neste grupo; a mediatização dos acontecimentos cria bolhas de importância que pouco ou nada têm a ver com o verdadeiro impacto na sociedade ou na História. Famosos, conquistas desportivas, grandes personalidades da nação. Para além do mais, a História dispensa os absolutismos de uma sociedade desinformada. Nunca deixa de ser um conjunto de pontos numa superfície, a que apenas conseguimos aceder em parte, como se pousássemos os nossos olhos numa folha de papel sobre uma mesa a partir de um plano situado ao mesmo nível que a mesa. A História esquece o inútil, o desnecessário. A sociedade mediática sobrevaloriza o absurdo, o passageiro, o que nunca verdadeiramente existe, no sentido em que não se chega a inscrever no inconsciente colectivo de um povo.
Algumas semanas depois da RTP ter comemorado com bolorenta pompa e circunstância o seu aniversário, serviu à massa indiferenciada de espectadores o mais indigesto prato que se pode servir: aquele que já passou há muito do prazo. Não houve apenas um conjunto de circunstâncias a rodear a votação do concurso televisivo; houve um movimento de silenciados do antigo regime, os que finalmente tiveram a oportunidade de expressar em público o que foi durante trinta anos reprimido. A memória que dura o tempo de uma vida não esquece o tempo idílico da infância; para além disso, recupera e reconstrói a realidade rasurando todas as manchas e defeitos que aquela vai ganhando. É por isso natural que muitos dos que admiram Salazar tendam a desvalorizar a sua tendência para a, digamos, opressão totalitária, em favor das suas supostas virtudes salvíficas: o homem que recuperou a economia; o homem que evitou que Portugal fosse à guerra; o homem santo, defensor da fé católica no país, contra a invasão ateia que se vivia no resto do mundo civilizado.
Salazar imaginou um país, no sentido em que criou uma série de imagens que se fixaram no inconsciente colectivo português, reorganizando a consciência de um tempo, tanto presente como futuro. Salazar criou aqueles que agora votaram nele. E, vamos lá ver bem as coisas, já ultrapassámos o complexo de Édipo; no fim de contas, apenas 70000 de nós votaram repetidamente nele.
Algumas semanas depois da RTP ter comemorado com bolorenta pompa e circunstância o seu aniversário, serviu à massa indiferenciada de espectadores o mais indigesto prato que se pode servir: aquele que já passou há muito do prazo. Não houve apenas um conjunto de circunstâncias a rodear a votação do concurso televisivo; houve um movimento de silenciados do antigo regime, os que finalmente tiveram a oportunidade de expressar em público o que foi durante trinta anos reprimido. A memória que dura o tempo de uma vida não esquece o tempo idílico da infância; para além disso, recupera e reconstrói a realidade rasurando todas as manchas e defeitos que aquela vai ganhando. É por isso natural que muitos dos que admiram Salazar tendam a desvalorizar a sua tendência para a, digamos, opressão totalitária, em favor das suas supostas virtudes salvíficas: o homem que recuperou a economia; o homem que evitou que Portugal fosse à guerra; o homem santo, defensor da fé católica no país, contra a invasão ateia que se vivia no resto do mundo civilizado.
Salazar imaginou um país, no sentido em que criou uma série de imagens que se fixaram no inconsciente colectivo português, reorganizando a consciência de um tempo, tanto presente como futuro. Salazar criou aqueles que agora votaram nele. E, vamos lá ver bem as coisas, já ultrapassámos o complexo de Édipo; no fim de contas, apenas 70000 de nós votaram repetidamente nele.
[Sérgio Lavos]
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