02/03/07

Cartas de Iwo Jima

As notícias sobre a excelência do último filme de Clint Eastwood, "Cartas de Iwo Jima", terão sido exageradas. A unanimidade dos críticos portugueses é um acontecimento raro (quem se lembra da última vez que sucedeu o fenómeno?), apesar de, ultimamente, Eastwood se ter transformado no realizador americano a adorar - repete-se o lugar-comum do último dos clássicos. Senti-me impelido (empurrado?), apesar da escassez do tempo em mãos - quem disse que a crítica não é um exercício de publicidade indirecta? Não me interessa saber se o crítico é ou não elitista; Luís Miguel Oliveira, Bruno Sena Martins e Alexandre Andrade têm discorrido sobre o tema com mais ou menos acerto. De resto, o maior blockbuster de sempre, "Titanic", que eu me lembre também conseguiu um estranho consenso crítico na época. Não percebo o que é ser elitista no exercício da crítica, mas entendo o elitismo no gosto. Apenas preferia ver outro termo utilizado: exigência. De quem vê e de quem faz. O criador deve esperar que a leitura feita da obra criada ultrapasse as suas próprias expectativas; a interpretação não acaba na sala de montagem, continua no espírito de cada espectador. E este deve exigir que a obra coloque problemas, deve desejar que não lhe seja tudo oferecido de bandeja. Elitismo é uma etiqueta colada por quem não espera nada de um filme a quem acha que o exercício da crítica exige uma independência em relação à opinião de quem pouco exige do cinema. De tanto malabarismo argumentativo, acabo por me aproximar da conhecida resposta de João César Monteiro a um jornalista, à saída da sua "Branca de Neve". Quem emite uma opinião sobre um filme - não passa disso mesmo, opinião - deveria ter em mente a frase de César Monteiro.
Mas Eastwood. O filme é um clássico instantâneo. A sério. É como a sopa: junta-se água e pronto. Por vezes interessa deixar o pensamento à porta e classificar pavloveanamente as coisas: clássico, e está despachado. A serenidade, a segurança, as citações - John Ford, Kurosawa, vi escrito. Mas... Spielberg, acrescento eu. É bom? Não, não não é. Enquanto via o filme, aquilo que mais me rondou o espírito foi "O Resgate do Soldado Ryan", obra de nenhuma maneira prima, incompleta e imperfeita do melhor realizador de filmes de acção de sempre. "Cartas de Iwo Jima" tem demasiados defeitos para tanto elogio produzido. A montagem - intercalando o huis clos das grutas com a armada americana a caminho - linear e aqui e ali incongruente, não acompanha a tensão dramática de cada sequência. Se Eastwood não gostasse tanto de contar uma boa história (e não tivesse Paul Haggis a trabalhar no argumento), poderia ter realizado uma obra-prima abstracta sobre a guerra - a claustrofobia, o medo, a expectativa. Ah, mas é claro, Terence Mallick já fez isso (e Copolla, em "Apocalypse Now", mas este acaba por ser mais uma meditação sobre o mal do que outra coisa). Mallick já filmou a poética da máquina de guerra em "A Barreira Invisível". O que restava a Eastwood? Criar um filme com uma fotografia radiante, um timing dramático perfeito (apesar do estilo de representação do actores japoneses ser ocidental - longe, longe, do silêncio e da crispação calada e séria de Kurosawa, por exemplo), um panfleto anti-guerra eficaz e relativamente equidistante em relação aos dois lados. Digo "relativamente" porque me parece que continua a existir um preconceito no retrato que é feito do soldado japonês. Aqueles com quem o espectador se identifica agem como um ocidental em guerra - a cena em que um soldado americano é recolhido pelos japoneses é sintomática. Os que se distanciam da empatia com o espectador aproximam-se mais do modelo do soldado japonês tradicional. E claro, a paixão que os dois "heróis" partilham pelo american way of life - a América, mesmo quando se coloca do lado do Outro, não deixa de se celebrar a si própria e aos seus valores.
Um clássico? De Eastwood, prefiro "Imperdoável", "As Pontes de Madison County", mesmo "Mystic River" e "Million Dolar Baby". São quatro - quatro - que bastariam para provar o lugar do realizador na História do cinema. "Cartas de Iwo Jima" é bom, mas não se aproxima sequer de clássicos como "A Barreira Invisível", "Apocalypse Now", "O Caçador", de Michael Cimino, ou, porque não, o filme mais realista (?) jamais feito sobre a guerra: "Les Carabiniers", de Jean-Luc Godard.

[Sérgio Lavos]

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