15/03/07

Compre, não leia

Comecei a ler um artigo da London Review of Books sobre duas novas versões do clássico da língua inglesa "Sir Gawain and the Green Knight", e pensei: o texto que irei escrever sobre isto conseguirá afastar qualquer leitor desde a primeira linha. Quem se interessa pela poesia medieval inglesa ou pela opinião de um crítico com muito tempo em mãos para gastar? Keep it short, keep it simple. O uso de expressões em língua estrangeira é também um claro sinal de pedantismo. Contudo, atrevo-me a perguntar: não será batido reclamar do uso de expressões em língua estrangeira? Entre ser pedante e repetir lugares-comuns, quem se atreverá a escolher? Já se foram todos? Então é assim: o texto, escrito por Frank Kermode, consegue ter mais interesse num parágrafo do que a melhor recensão publicada num jornal português na última semana sobre a última excitação editorial. Nem sei bem qual é; tenho reparado que a imprensa portuguesa tem-se dedicado de corpo e alma à nobre arte da investigação do bas-fond social - apenas assim se explica a profusão de reportagens, entrevistas e outras variações propagandísticas à volta de uma nota só: a arte de vender o corpo.
Querem o link? Aqui está. Repare-se na introdução, onde Kermode fala da obra e do seu historial e importância para a literatura inglesa. Note-se as referências intertextuais, a criações que se inspiram no clássico, a outros estudiosos da obra. Tenha-se em atenção o elegante uso da linguagem, intercalando explicações técnicas (mas nada fastidiosas) com observações irónicas enriquecidas pela diversidade vocabular, principalmente no uso de adjectivos. Adjectivos... a classe de palavras preferida de qualquer crítico médio português. Mas atenção, sempre utilizados com comedimento, ousando pouca variação nas combinações substantivo/adjectivo (um pouco à imagem das equipas de Mourinho). Mas Kermode abusa. E julga que pode criar interesse no leitor, cativá-lo para a leitura de um texto exigente mas nem por isso menos obrigatório. Didáctico? Não, isso é chato, cheira a escola. É apenas a arte de bem escrever sobre livros. Há gente a nos jornais portugueses com esta facilidade na escrita? Poucos, sobrevivemos ainda na era da formatação do estilo. E ainda por cima, deixámos de ter polemistas, a Internet e as auto-estradas tornaram o país ainda mais pequenino e medroso.
Escrever crítica literária não tem de ser um frete de jornalista nem um exercício teórico sem um pingo de originalidade. Há uma dimensão criativa que deveria ser obrigatoriamente procurada pelo crítico, tendo em conta que os textos destinam-se a ser lidos por um público interessado, que espera mais que um resumo ou uma paráfrase do texto comentado. Quando não é citação directa do livro até enjoar - quase sempre exemplo na crítica de poesia.
O que me parece positivo no novo Ípsilon, apesar da desorganização geral do suplemento, é o esforço evidente de dar espaço à reportagem, seja em forma de entrevista ou artigo de desenvolvimento sobre um tema, complementando as recensões que aparecem nas últimas páginas. Exemplo disto é o texto de Luís Miguel Queirós no último número a propósito da saída do livro de Colm Toibin, "O Mestre". Ou o artigo, mais ou menos polémico, sobre o plágio, há umas semanas.
Talvez um dia cheguemos a uma harmonia próxima da qualidade dos suplementos literários de alguns jornais estrangeiros. Quando os nossos suplementos deixarem de servir de mero veículo para as estratégias promocionais das editoras ou para a livre expressão de um gosto pessoal do editor ou jornalista. Mesmo que esse gosto seja sempre o ponto de partida do crítico. A bem da salubridade da literatura.

[Sérgio Lavos]

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