14/03/07

Diário de um Escândalo

Por vezes, há filmes menos bons, filmes cujas fraquezas não deixam que os pontos fortes acabem por resistir à avaliação totalitária do objecto. Um verdadeiro mau filme não persiste por mais do que algumas horas, aquelas que perdemos a pensar em que outra actividade poderíamos ter gasto o dinheiro do bilhete. Ou os minutos que gastamos a resumir às pessoas que conhecemos a história enquanto criticamos tudo o que é obrigatório criticar. Mas claro, há sempre ideias brilhantes clamorosamente mal trabalhadas. Grandes filmes falhados. Por uma ou outra razão.
E há os outros. Os que nunca seriam grandes filmes, ou quase - nunca se sabe o que pode um génio fazer com um mau argumento em mãos. Mas recuse-se pensar nos acasos da História. Produzir uma obra de arte é reduzir as possibilidades a um todo fechado. Depois de chegar ao público, o círculo extingue-se. Nada a fazer.
Os outros. Por exemplo, "Diário de um Escândalo", de Richard Eyre. É necessário fazermos um esforço para ignorar o duelo de actrizes - Cate Blanchett e Judi Dench salvam uma obra menor, filmada como se fosse um telefilme. E a música de Phillip Glass, pomposamente vazia, a sublinhar as cenas fundamentais, cortando como um punhal a tensão fabricada pelos actores (Billl Nighy tem também uma excelente prestação), é a cereja azeda em cima de um bolo por si só já muito pouco saboroso.
No entanto... o desperdício é enervante. Os diálogos, escritos por Patrick Marber, são por vezes tão certeiros como uma flecha lançada por Guilherme Tell. Não tendo assistido a "Closer", a surpresa acaba por obrigar a manter o argumentista debaixo de olho. E, para além dos diálogos, há a história inventada por Zöe Heller (a autora do romance original). Talvez seja ela a culpada de, passados cinco dias, ainda regressar ao filme. A complexidade dos temas tratados - a luta de classes, a frustração e a repressão sexual - é complementada pela aproximação heterodoxa da romancista - e de Marber. Sheba (Blanchett) tem um caso com um miúdo de 15 anos, mas está longe de ser considerada uma agressora sexual. Por outro lado, Barbara (Dench) não é a manipuladora frustrada, a personagem malévola que aparenta ser ao início (no entanto, alguns críticos acreditaram no carácter plano da construção de Dench). A fragilidade sublimada de Barbara levou-me, a determinada altura, a simpatizar com a sua maldade forçada. E a antipatizar com o snobismo infantil e caprichoso de Sheba. A velha luta de classes, claro. Sheba é uma ex-punk, filha de pai rico e famoso que (imaginamos) se rebelou contra a autoridade conservadora casando-se com um homem mais velho quando tinha vinte anos. Barbara compreende logo isto - e ataca a presa pelo flanco mais fraco, fareja a sua ingenuidade rebelde. E a frustração de estar encarcerada numa vida familiar pacata há demasiado tempo. Barbara é a filha da classe média que nunca conseguiu pertencer à classe superior (como Virginia Woolf, que não é apenas uma referência surgida a meio de um diálogo no filme - há uma rima irónica com o "quarto que seja seu" onde Sheba se refugia, um privilégio dos abastados). Sheba é a filha rica enfastiada com o bem-estar material. Mas nada é assim tão claro. O terceiro termo da equação, o adolescente, é a prova de uma continuidade na luta de classes - e a refutação desse conflito. Ele mente quando apela para o complexo de culpa de Sheba - não é maltratado nem pobre, apesar do sotaque cockney e das referências pop diferentes da professora (a distância entre Siouxie and the Banshees e The Streets). A manipulada Sheba cai numa teia tecida pelos seus preconceitos e sentimentos de culpa de classe. Mas qual o adolescente que não gostaria de lançar a rede à bela Cate Blanchett?

[Sérgio Lavos]

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