22/11/06

O império

Não sei se a ficção será suficiente para se perceber o espírito de um país, mas quero pensar que ajuda bastante. De qualquer modo, a realidade parece prejudicar mais do que seria normal. Veja-se a leitura que foi feita, por muitos, dos resultados das recentes eleições americanas. O que se sobrepôs a uma análise que seria evidente - a derrota dos republicanos deveu-se a uma desastrosa condução da guerra por parte da administração Bush - foi um seguidismo digno de colonos exemplares cultivado com fervor pelos defensores de sempre. Não se esperaria um mea culpa. Mas o silêncio teria sido talvez mais avisado.
De que ficção se fala quando se fala da ideia que fazemos da América? No caso, Phillip Roth. No seu livro "Casei Com um Comunista", o retrato que é desenvolvido, de um período negro da História americana - o mccarthismo e a "caça às bruxas" -, conduz o leitor por caminhos que nem sempre se conseguem resignar a interpretações simplistas. Se as perseguições a comunistas e a suspeitos se acabou por transformar num delírio de denúncias que se aproximou perigosamente dos piores hábitos do estalinismo - o horror, diria eu, na "terra dos livres, o lar dos bravos" -, a verdade é que a consciência de um país também se acaba por medir pela rapidez com que cura as suas feridas e absorve os seus defeitos. Sabemos que depois do desastre neoconservador se seguirão tempos de lamento e cura. Ainda que as próximas presidenciais sejam ganhas pelo candidato republicano, o regresso ao velho realismo do império está mais do que prometido.
A dimensão do logro neocon começa a ganhar proporções assustadoras. Como já foi escrito, o problema das teses idealistas do grupo, que apenas podiam vir de quem em tempos já pertenceu a uma esquerda liberal (no sentido que os americanos atribuem a esta expressão), era a sua incompatibilidade com a triste realidade do mundo. Não deixa de ser curioso também que, em Portugal, de entre os partidários mais intransigentes da política externa norte-americana, se possam escolher vários comentadores e políticos que frequentaram na juventude a extrema-esquerda, o verdadeiro cadinho da actual geração no poder. A coincidência de histórias, se não é comovente, acaba por ser uma pista fundamental para conhecermos a mentalidade de uns e outros. O totalitarismo é vigilante, paciente. O realismo, seja de esquerda ou de direita, é a única via possível para a estabilização das sociedades modernas.
As obras de Roth conseguem fazer incidir uma poderosa luz sobre as tensões da sociedade americana dos últimos 50 anos. Sobre o modo como o equilíbrio da mais perfeita democracia é precário, assente sobre pilares que a qualquer momento podem ruir. E que por serem tão flexíveis, acabam por evitar que o país caia para um dos lados. Cada vez é menos provável que a democracia se torne império.

[Sérgio Lavos]

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