27/11/06

Cesariny, ainda

"Quando um poeta morre, extingue-se um incêndio.", escreve Lilith. Mas a vida banal continua, e ainda bem que a banalidade não tem muitas oportunidades de se cruzar com a desordem da vida e com aquilo que muitas vezes caminha do lado de fora dela. Quando o faz, o resultado pode ser semelhante ao que vimos ontem, nos telejornais da SIC e da RTP. Honra na morte, que na vida rondou demasiadas vezes o opróbrio. Até tem alguma graça, ouvir a mesma expressão a classificar Cesariny (não duvido que o próprio encontrasse na ironia do sucedido razão para o riso): "expoente máximo" da literatura, quê? literatura portuguesa, quê? Sorri o escritor "besta-célere" enquanto debita o atabalhoado obituário. Panegírico, o dos amigos, que atrapalhados acabam por ser caçados pela "repórter no velório", às moscas, às moscas, que no silêncio germina a eternidade. Cesariny, de quem ninguém conhece nada, saberia rir-se dos transeuntes entrevistados pelo repórter do suplemento "Local", do Público, curiosos do morto que se finou engatando a fama que nunca quis nada com ele. Ontem, depois das tragédias percorridas a dedo durante uma hora de sangue e nojo, o finalzinho perfeito para acabar o dia em grande: um actor no escuro do estúdio que se chega à luz e declama. (João Grosso não tem culpa destes fretes.) Algo sobre "auto-motoras" ou homens que são auto-motoras e lá em casa, enquanto se espera pelo tio Marcelo, o espanto. A literalidade da poesia nunca foi suficientemente compreendida pela crítica. Há lirismo na incompreensão, na distância entre palavra e metáfora, ausência a presença. A ignorância é uma figura de estilo. Como o tio Marcelo bem sabe, cinco minutos depois, cuspindo um poema qualquer de Gedeão que se podia aplicar a Cesariny, vomitando outro de Cesariny dedicado a Gedeão. Vê-se, mas não se acredita, um dois em um poético! Toca a despachar, que a tropa vem aí. Poesia é isto! Cesariny é isto! "Passar tudo pela refinadora" até sair a pasta cá para fora, pronta servir como papa à massa inerte que espera. Não, não vale a pena. Faço um pedido às televisões generalistas: por favor, não dêem importância a estas coisas, à morte e tal e à versalhada que alguém escreveu em tempos. A sério! Ignorem, deixem passar, há tanto cadáver para mostrar e políticos para discursar e milhares de assuntos a desenvolver mais importantes do que a morte de alguém, serenamente em paz com o mundo. Poupem-nos à humilhação da glória televisiva. A poesia passa bem sem isso.

[Sérgio Lavos]

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