16/11/06

Dr. House

A primeira perplexidade que a série "Dr. House" provoca tem como origem o facto de vermos Hugh Laurie, actor cómico inglês de excelente linhagem (Black Adder, a dupla com Stephen Fry), transformado em verrinoso médico americano. A mudança é espantosa; o sotaque, a pose, a voz. Suponho que a escolha de Laurie para o papel não teve em conta o currículo anterior. Mas foi de uma eficácia a toda a prova.
É claro que o charme da personagem passa principalmente pelos diálogos. Não interessa saber quantos médicos conhecemos que se aproximam de House. A arrogância e a falta de polimento são compensadas pelos diagnósticos milagrosos que House consegue desencantar para cada caso clínico. E depois, há uma fragilidade que se vislumbra por trás de toda a má-educação. House não passa de um aleijado drogado e solitário, sem mulher(es) e sem amigos.
Vejo pouca televisão, mas faço muito zapping. Quando uso o comando, tenho o hábito de delimitar uma zona anti-séptica quando passo pela TVI, o canal que não faz televisão, produz matéria orgânica decomposta e atira-nos à cara, num volume insuportável, o pior que a humanidade pode ter para mostar. Com Dr. House, o caso é o mesmo. Depois de horas de novelas tiradas a papel químico umas das outras, com blocos de publicidade de vinte minutos que incluem anúncios a toques de telemóvel e outras abjecções do género, chega Dr. House, nunca antes de trinta minutos depois da hora programada pelo canal. E a meio de cada programa (estão a ser emitidos dois de cada vez), mais publicidade martelada na cabeça de quem ainda resiste - em princípio, os insones e os que trabalham por turnos. Não sei que critério é usado para a inserção de publicidade, mas parece-me que a eficácia de anunciar produtos de limpeza ou fraldas àquela hora será, no mínimo, reduzida. A qualidade da série não exime de nenhuma maneira os programadores da estação. Nos E.U.A., estes programas passam em prime-time, aqui são lançados para o degredo da hora dos intelectuais sem emprego fixo: sempre depois da meia-noite.
Os misantropos são personagens fascinantes. House prova a tese, e identifica também outro sintoma: a mal-estar das sociedades modernas, hipocondríacas e obcecadas pela morte de um modo desequilibrado. O sucesso das séries passadas em hospitais baseia-se na possiblidade optimista de haver alguém que, em situações extremas, de proximidade do fim, pode realizar milagres e prolongar um pouco mais o tempo a que temos direito. Não se poderá censurar este tipo de ilusão - a depressão pós-moderna tem de continuar a ser bem nutrida.

[Sérgio Lavos]

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