29/11/06

Ian McEwan e o plágio

Correu pela blogosfera um dos muitos fogachos em que ela se especializou, a propósito do suposto plágio de Miguel Sousa Tavares no seu romance Equador. Todos conhecem a história. Achei, na altura, que não devia escrever nada sobre assunto, em parte porque nada teria a acrescentar ao escrito, em parte porque uma obra tão sobrevalorizada, que se tornou um best-seller em função de méritos que não os literários, não valia o esforço. E, principalmente pelo absurdo da trama: ninguém devia levar a sério um anónimo que encontra semelhanças no relato de factos históricos referidos em dois livros diferentes - no caso, fala-se de um livro-reportagem escrito por Dominique Lapierre e Larry Collins. A manipulação é evidente, mas mais acabrunhador ainda é a mera sugestão de que uma alusão a acontecimentos históricos que todos conhecem pode ser fundamento para uma acusação de plágio. O tempo mediu bem a amplitude do ridículo do(s) denunciador(es) anónimo(s). E no mesmo passo expôs ad nauseam a frivolidade mal-criada do escritor. Duas semanas depois, os tablóides já se tinham esquecido de tudo. Previsível.
Mas esta história, que nem sequer se pode acusar de sordidez, de tão mesquinha que é, vê-se repetida com um dos meus escritores preferidos, Ian McEwan. O que me interessa nisto tudo? A minha reacção aos dois casos. Com Miguel Sousa Tavares não consegui deixar de sentir, à primeira leitura, que os acusadores anónimos poderiam ter alguma razão. Mesquinhez pura, admito. E nisso, muitas figuras públicas, MST incluido, acertam em cheio. As polémicas artificiais que se geram em torno de quem aparece têm quase sempre uma única origem: o despeito dos menos conhecidos. (O caso mais flagrante é Eduardo Prado Coelho. Não que ele precise da minha defesa - o homem ignora os blogues, como, ufano, não se cansa de repetir -, mas a verdade é que a exposição diária a que ele se submete é um risco. Porque diz mais vezes, erra mais vezes. Porque erra mais vezes, é citado mais vezes por quem escreve, principalmente na blogosfera). Há outros casos, e Miguel Sousa Tavares nem é dos que têm mais razões de queixa - suspeito que o principal motivo para baixezas, no seu caso, tem que ver com atalhos futebolísticos. E se falamos deste tipo de conversa de café, da bola, assunto encerrado.
Seja como for, a minha primeira reacção ao caso do plágio MST foi precipitada, precisamente nos antípodas de Ian McEwan. Porque gostei do livro em causa (Expiação), porque achei que as hipotéticas provas do plágio eram forçadas e, principalmente, porque McEwan cita a autora da obra referida em entrevistas e não se esqueceu de incluir o livro em causa, uma autobiografia de Lucilla Andrews, ex-enfermeira, na bibliografia consultada. Ora, um romancista não é obrigado a isto. McEwan é conhecido por esse hábito (estranho, por exemplo, à maior parte dos escritores portugueses) - o de pesquisar minuciosamente para os livros de ficção que escreve. O esforço é visível; por exemplo, em Sábado, a sua última obra, é tão evidente que torna a leitura mais fastidiosa, ao ponto das descrições das cirurgias se tornarem perfeitamente excedentárias em termos de economia narrativa. Em Expiação, pelo contrário, os relatos pormenorizados das actividades que decorrem no hospital onde Briony Tallis trabalha como enfermeira, durante a Segunda Guerra Mundial, são absolutamente pertinentes, localizando de modo decisivo naquele tempo histórico a acção do romance. Para alguém sem conhecimentos técnicos, é obrigatória a consulta de livros sobre o tema. E McEwan nunca escondeu a importância que a obra de Lucilla Andrews teve no seu trabalho.
O que fez Ian McEwan, perante as acusações de um tablóide, Mail on Sunday? Escreveu um artigo no Guardian. Explicou tudo muito bem explicadinho, sem ameaças de processos, sem má-criação e rudeza lusitana. Não será necessário acreditar nas suas explicações, porque à partida não havia sequer que duvidar. Mas o público que desconhece do que se fala gosta muito de discutir o que desconhece. E a boa educação nunca foi um óbice para ninguém. Torna mais credível quem a ela recorre.

[Sérgio Lavos]

Videografias 2


A colaboração entre Spike Jonze e Fatboy Slim é uma das colaborações mais imaginativas que encontramos no mundo dos videos musicais, porque estes tornam-se uma arte para lá da arte musical a que dão imagem. Acontecera em 1998 com Praise You, um clássico das videografias, onde um fictício grupo de dança - Torrance Community Dance Group - invade a entrada de um cinema e, contra todas as adversidades, incluindo, não só a falta de talento, mas também a entrada em cena do gerente que desliga o leitor, concretiza a sua performance. Este video é também um clássico musical do movimento cinematográfico independente que surge nos anos 70 - o guerilla filmmaking. Consiste, essencialmente, numa versão mais perigosa, porque ilegal, do Dogma dinamarquês. Com orçamentos reduzidos, o realizador não pede licenças ou autorizações para filmar em espaços privados tendo de ocupar ilegalmente os espaços, filmar e fugir. Esta técnica é, obviamente, precária (por vezes, não dá para repetir cenas) mas chegou a organizar uma escola de realização.

A colaboração entre os dois volta a acontecer em 2001, de um modo completamente diferente, com Weapon of Choice, um video realizado com muitos efeitos e com Christopher Walken. Walken tinha 58 anos e ajudou na coreografia de sapateado filmado na entrada do Marriott Hotel em L.A. A grande estrela sabe dançar.

[Susana Viegas]

27/11/06

Cesariny, ainda

"Quando um poeta morre, extingue-se um incêndio.", escreve Lilith. Mas a vida banal continua, e ainda bem que a banalidade não tem muitas oportunidades de se cruzar com a desordem da vida e com aquilo que muitas vezes caminha do lado de fora dela. Quando o faz, o resultado pode ser semelhante ao que vimos ontem, nos telejornais da SIC e da RTP. Honra na morte, que na vida rondou demasiadas vezes o opróbrio. Até tem alguma graça, ouvir a mesma expressão a classificar Cesariny (não duvido que o próprio encontrasse na ironia do sucedido razão para o riso): "expoente máximo" da literatura, quê? literatura portuguesa, quê? Sorri o escritor "besta-célere" enquanto debita o atabalhoado obituário. Panegírico, o dos amigos, que atrapalhados acabam por ser caçados pela "repórter no velório", às moscas, às moscas, que no silêncio germina a eternidade. Cesariny, de quem ninguém conhece nada, saberia rir-se dos transeuntes entrevistados pelo repórter do suplemento "Local", do Público, curiosos do morto que se finou engatando a fama que nunca quis nada com ele. Ontem, depois das tragédias percorridas a dedo durante uma hora de sangue e nojo, o finalzinho perfeito para acabar o dia em grande: um actor no escuro do estúdio que se chega à luz e declama. (João Grosso não tem culpa destes fretes.) Algo sobre "auto-motoras" ou homens que são auto-motoras e lá em casa, enquanto se espera pelo tio Marcelo, o espanto. A literalidade da poesia nunca foi suficientemente compreendida pela crítica. Há lirismo na incompreensão, na distância entre palavra e metáfora, ausência a presença. A ignorância é uma figura de estilo. Como o tio Marcelo bem sabe, cinco minutos depois, cuspindo um poema qualquer de Gedeão que se podia aplicar a Cesariny, vomitando outro de Cesariny dedicado a Gedeão. Vê-se, mas não se acredita, um dois em um poético! Toca a despachar, que a tropa vem aí. Poesia é isto! Cesariny é isto! "Passar tudo pela refinadora" até sair a pasta cá para fora, pronta servir como papa à massa inerte que espera. Não, não vale a pena. Faço um pedido às televisões generalistas: por favor, não dêem importância a estas coisas, à morte e tal e à versalhada que alguém escreveu em tempos. A sério! Ignorem, deixem passar, há tanto cadáver para mostrar e políticos para discursar e milhares de assuntos a desenvolver mais importantes do que a morte de alguém, serenamente em paz com o mundo. Poupem-nos à humilhação da glória televisiva. A poesia passa bem sem isso.

[Sérgio Lavos]

26/11/06

Mário Cesariny (1923-2006)

É apenas isto: assinalar os dias e as noites, as correntes que os juntam e os separam.

[Sérgio Lavos]

24/11/06

IVG (2)

Em dois dias seguidos, uma acusação se repete. Ontem, directamente e feita por um grande amigo; hoje, por mail, o Rui também me acusa do mesmo: de um desvio para a direita. Não sei se deveria sentir-me irritado; aceito qualquer mudança no meu modo de pensar porque sempre fiz questão de achar que a ortodoxia é sempre inimiga da pertinência. A não ser que seja acompanhada de um saudável cinismo ou de uma abominável hipocrisia. A acusação, na boca de um amigo de esquerda, acabou por ser menos surpreendente do que se poderia esperar. Mas, lamento, andamos muito longe da verdade.
Em quase tudo continuo de esquerda. Nos costumes, sou liberal ao extremo: acredito no dever do Estado não se imiscuir na vida privada de cada um. E isso inclui aceitar, por exemplo, todos os modelos de união entre pessoas, do casamento às uniões de facto heteressoxuais, passando pelas uniões homossexuais, o que obriga, claro, a defender uma mudança de legislação que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Com todos os direitos que a legalidade permita, incluindo a adopção. E isto não pode ser nunca matéria referendável. Acredito também que a revolução sexual dos anos 60 e a luta pelos direitos das mulheres, em conjunto, contribuiram para a mais significativa mudança ocorrida nos últimos 40 anos no mundo. Acredito ainda na liberalização total da venda de todo o tipo de droga, desde que o comércio das drogas duras seja controlado pelo Estado.
Em termos de Economia, apenas posso aceitar a globalização e o mercado livre; seria pouco sensato não acreditar nesta inevitabilidade. Mas defendo que o poder de intervenção do Estado se deva manter nos domínios económico e produtivo - no fim de contas, se elegemos os nossos políticos para nos governarem, não me parece normal depois pedirmo-lhes para se demitirem das suas responsabilidades. Não acredito, simplesmente, nas virtudes da auto-regulação do mercado. Porque falamos de seres humanos, não de gráficos e tendências baseadas em modelos teóricos que muitas vezes falham estrondosamente. Nenhuma teoria económica explica a vontade de poder humana e a exploração do Homem pelo Homem. No entanto, ela acontece. Além do mais, acho que esta globalização se devia estender verdadeiramente a todos. Não deveria haver restrições à imigração e à livre circulação de pessoas, ao contrário do que muitos dos que se dizem liberais defendem. Contradições.
O ponto da questão: tenho bastantes dúvidas em relação ao sentido do meu voto no referendo à IVG. Não sigo a linha do partido político em que costumo votar, mas muitos no campo da direita também se mobilizaram na luta pelo "sim", o que é apenas normal. Não é um chavão afirmarmos que a causa é transversal; é a verdade, porque quase todos nós, em alguma altura da vida, já testemunhámos a existência de uma realidade incontornável: o aborto clandestino. Adiar mais o confronto seria criminoso. Mas sei que devo isto apenas aos esforços da esquerda progressista. Esta razão bastaria para o que sou. Se não existisse tudo o resto.

[Sérgio Lavos]

IVG

O excesso argumentativo que uma questão como a despenalização do aborto espoleta corre sempre o risco de ser contraproducente, seja num sentido ou no outro, e favorece o pior que pode acontecer: uma decisão iminentemente individual ser tomada de acordo com o preconceito ideológico.
Quero pensar de acordo com a minha consciência; e esta obriga-me a aceitar a opinião daqueles que pensam de modo diverso do meu. Passando por cima desta evidência, deparamos com o ponto fundamental do referendo: qualquer que seja o resultado que dele advenha, o que acabará por acontecer é a imposição de um ponto de vista moral sobre uma questão de consciência, de uma parte da sociedade sobre a outra. A partir disto, o que devemos exigir a nós próprios é responder a uma pergunta simples: será que quero impor aquilo que penso ao conjunto de cidadãos que diverge da minha posição?
Nos dois campos, o que mais se vê é o despudor do moralismo - aquele dos defensores da despenalização, que não hesitam em esgrimir os mais banais argumentos nesta questão (o argumento do progresso, o argumento feminista, o argumento puramente reactivo contra qualquer ideia que "cheire" a conservadorismo e retrocesso); e o moralismo da trincheira do "não", com o seu argumentário terrorista da defesa intransigente do mais lato dos conceitos: a "vida".
O problema não será a bondade das razões de cada campo. É sempre o inevitável deslizar para a retórica primitiva, política, lamentavelmente evitando aquilo que se deve exigir num problema tão delicado quanto este: seriedade na argumentação.
Voltando à questão que se coloca: será que devo impor a minha moral aos outros? A resposta deverá ajudar-me a tomar uma decisão em relação ao próximo referendo. No silêncio da reflexão ou no espaço de exposição de um blogue, decidirei na certeza de quem não farei o mesmo que fiz em 1998: abster-me.

[Sérgio Lavos]

22/11/06

O império

Não sei se a ficção será suficiente para se perceber o espírito de um país, mas quero pensar que ajuda bastante. De qualquer modo, a realidade parece prejudicar mais do que seria normal. Veja-se a leitura que foi feita, por muitos, dos resultados das recentes eleições americanas. O que se sobrepôs a uma análise que seria evidente - a derrota dos republicanos deveu-se a uma desastrosa condução da guerra por parte da administração Bush - foi um seguidismo digno de colonos exemplares cultivado com fervor pelos defensores de sempre. Não se esperaria um mea culpa. Mas o silêncio teria sido talvez mais avisado.
De que ficção se fala quando se fala da ideia que fazemos da América? No caso, Phillip Roth. No seu livro "Casei Com um Comunista", o retrato que é desenvolvido, de um período negro da História americana - o mccarthismo e a "caça às bruxas" -, conduz o leitor por caminhos que nem sempre se conseguem resignar a interpretações simplistas. Se as perseguições a comunistas e a suspeitos se acabou por transformar num delírio de denúncias que se aproximou perigosamente dos piores hábitos do estalinismo - o horror, diria eu, na "terra dos livres, o lar dos bravos" -, a verdade é que a consciência de um país também se acaba por medir pela rapidez com que cura as suas feridas e absorve os seus defeitos. Sabemos que depois do desastre neoconservador se seguirão tempos de lamento e cura. Ainda que as próximas presidenciais sejam ganhas pelo candidato republicano, o regresso ao velho realismo do império está mais do que prometido.
A dimensão do logro neocon começa a ganhar proporções assustadoras. Como já foi escrito, o problema das teses idealistas do grupo, que apenas podiam vir de quem em tempos já pertenceu a uma esquerda liberal (no sentido que os americanos atribuem a esta expressão), era a sua incompatibilidade com a triste realidade do mundo. Não deixa de ser curioso também que, em Portugal, de entre os partidários mais intransigentes da política externa norte-americana, se possam escolher vários comentadores e políticos que frequentaram na juventude a extrema-esquerda, o verdadeiro cadinho da actual geração no poder. A coincidência de histórias, se não é comovente, acaba por ser uma pista fundamental para conhecermos a mentalidade de uns e outros. O totalitarismo é vigilante, paciente. O realismo, seja de esquerda ou de direita, é a única via possível para a estabilização das sociedades modernas.
As obras de Roth conseguem fazer incidir uma poderosa luz sobre as tensões da sociedade americana dos últimos 50 anos. Sobre o modo como o equilíbrio da mais perfeita democracia é precário, assente sobre pilares que a qualquer momento podem ruir. E que por serem tão flexíveis, acabam por evitar que o país caia para um dos lados. Cada vez é menos provável que a democracia se torne império.

[Sérgio Lavos]

21/11/06

Videografias 1



Em 1995, Thomas Vinterberg e Lars Von Trier assinam o Dogma onde se comprometem a seguir rigorosos padrões técnicos para obterem o filme puro, criticando toda a pós-produção dos filmes. A Festa de Thomas Vinterberg e Os Idiotas de Lars Von Trier são de 98, Mifune de Sören Kragh-Jacobsen de 99. Afirmavam que os créditos estéticos não pertencem ao realizador porque a função deste é forçar o momento à verdade, nos limites da interpretação e da duração dos planos, sem manipulação, sem banda sonora, reforçando a inspiração e a improvisação bem como os baixos orçamentos.
Em 1999, Vinterberg tem a sua única experiência nos videos realizando No distance left to run dos Blur, álbum 13. Diz-se que Damon se inspirou na relação que tivera com Justine Frischmann (Elastica). O video segue o Dogma. Um video-dogma.

[Susana Viegas]

16/11/06

Dr. House

A primeira perplexidade que a série "Dr. House" provoca tem como origem o facto de vermos Hugh Laurie, actor cómico inglês de excelente linhagem (Black Adder, a dupla com Stephen Fry), transformado em verrinoso médico americano. A mudança é espantosa; o sotaque, a pose, a voz. Suponho que a escolha de Laurie para o papel não teve em conta o currículo anterior. Mas foi de uma eficácia a toda a prova.
É claro que o charme da personagem passa principalmente pelos diálogos. Não interessa saber quantos médicos conhecemos que se aproximam de House. A arrogância e a falta de polimento são compensadas pelos diagnósticos milagrosos que House consegue desencantar para cada caso clínico. E depois, há uma fragilidade que se vislumbra por trás de toda a má-educação. House não passa de um aleijado drogado e solitário, sem mulher(es) e sem amigos.
Vejo pouca televisão, mas faço muito zapping. Quando uso o comando, tenho o hábito de delimitar uma zona anti-séptica quando passo pela TVI, o canal que não faz televisão, produz matéria orgânica decomposta e atira-nos à cara, num volume insuportável, o pior que a humanidade pode ter para mostar. Com Dr. House, o caso é o mesmo. Depois de horas de novelas tiradas a papel químico umas das outras, com blocos de publicidade de vinte minutos que incluem anúncios a toques de telemóvel e outras abjecções do género, chega Dr. House, nunca antes de trinta minutos depois da hora programada pelo canal. E a meio de cada programa (estão a ser emitidos dois de cada vez), mais publicidade martelada na cabeça de quem ainda resiste - em princípio, os insones e os que trabalham por turnos. Não sei que critério é usado para a inserção de publicidade, mas parece-me que a eficácia de anunciar produtos de limpeza ou fraldas àquela hora será, no mínimo, reduzida. A qualidade da série não exime de nenhuma maneira os programadores da estação. Nos E.U.A., estes programas passam em prime-time, aqui são lançados para o degredo da hora dos intelectuais sem emprego fixo: sempre depois da meia-noite.
Os misantropos são personagens fascinantes. House prova a tese, e identifica também outro sintoma: a mal-estar das sociedades modernas, hipocondríacas e obcecadas pela morte de um modo desequilibrado. O sucesso das séries passadas em hospitais baseia-se na possiblidade optimista de haver alguém que, em situações extremas, de proximidade do fim, pode realizar milagres e prolongar um pouco mais o tempo a que temos direito. Não se poderá censurar este tipo de ilusão - a depressão pós-moderna tem de continuar a ser bem nutrida.

[Sérgio Lavos]

15/11/06

Emendar (2)

Tenho um poema escrito em que me coloco... não é isto. Em que o sujeito enunciador se coloca na situação de emendar um poema antigo pela noite fora.
Este pode ser mais um dos meus textos umbiguistas e dedicados ao mais chato dos temas: o meu ego.
Antes de começar a escrever devotei a minha atenção, com tanto de desleixo como de persistência, à correcção de posts anteriores. Para minha satisfação, apenas minha. Ninguém relê entradas antigas. Sei mesmo que há quem visite o blogue diariamente e abuse do "toca e foge" de cada vez que depara com um texto com mais de cinco linhas. Como o que escrevo não tem a força suficiente para cativar à primeira leitura, sei bem que, ao debitar testamentos, contribuo de forma decisiva para a estratégia do blogger médio - conseguir ler o maior número de blogues no mínimo tempo possível, enquanto o chefe de secção passa e não passa. Enigmas da produtividade portuguesa.
Talvez seja injusto (não em relação ao hábitos de leitura de quem por aqui se perde). Há quem leia entradas antigas, parto de um princípio que se apoia numa razão simples: eu também o faço. Por vezes acontece-me encontrar raridades nos arquivos de outros blogues. E tanto podem ser textos que leio pela primeira vez ou releituras - os segundos ajudam-me a perceber porque gosto de determinado blogue, os primeiros convencem-me a linkar ou colocar nos favoritos o blogue visitado.
Emendar. Não sei explicar a origem da pertinência desta palavra, a razão de ser da sua justeza. Quantas vezes precisaremos nós de reescrever um texto? Quantas vezes poderemos emendar a matéria de que se alimenta o impulso criativo? Não preciso que me mostrem o caminho. Bastava que me indicassem o melhor corrector ortográfico do mercado.
A pouca verdade que consigo transmitir ao que escrevo perde-se nos ziguezagues das emendas. Não me impressiona a mediocridade da vida. Mas só posso recusar a vulgaridade na arte. Na literatura. Por isso tento emendar, sabendo que a distância entre o que pretendo e o que consigo é quase sempre inultrapassável.
Chega de ego, chega de auto-contemplação miserabilista. Guardo este tom para quando conseguir compreender na totalidade o génio de um dos meus paranóicos depressivos preferidos - Thom Yorke. Ou não. Vou emendar um poema antigo.

[Sérgio Lavos]

12/11/06

Os Subterrâneos

foto de Allen Ginsberg
A narrativa de Kerouac remonta a outros tempos. Não se trata propriamente de uma diferença temporal, do modo de vida americano alternativo dos anos 60, da Geração Beat, mas antes de um modo intenso e dramático de sentir a vida, de sentir tudo e de todas as maneiras. A prosa de Kerouac enche-se, por isso, dessa sensibilidade e dessa falsa ingenuidade, por vezes obscena, porque se trata de uma prosa excessivamente poética e excessivamente fluida. Uma quase obra-prima da corrente de consciência publicada em 1958 e de inspiração autobiográfica. A isto junta-se a bela cidade de São Francisco, a cidade da Golden Gate de Vertigo, a cidade de Kerouac, assim descrita:

"-Ela estava na ruela, sem saber bem quem era, em plena noite, um chuviscar miúdo de névoa, silêncio na São Francisco adormecida, os ferries para Berkeley e Oakland na baía, a baía envolta na mortalha dos nevoeiros de bocarra feroz, a auréola de luz estranha e sinistra que se elevava no meio, brotando de Alcatraz com as suas colunatas de templo antigo, o manto raso dos seus arcos de claridade-"

Os Subterrâneos (trad. e intr. Paulo Faria), Relógio D'Água, pág.49.

[Susana Viegas]

11/11/06

Em Paris

São duas horas, em média, até acordar. O apelo dos lençóis apenas desaparece, em dias de trabalho, duas horas depois de começarmos a laborar. A baixa produtividade de que se fala deve ser isto. Ao fim-de-semana, pode ser mais de duas horas. As tarefas com hora marcada sucedem-se maquinalmente, adiamos o desfazer da barba e o primeiro café do dia - é também necessário quando não se trabalha. Saímos à rua, o miúdo finalmente liberto da clausura de quem consegue acordar sempre à mesma hora, com ou sem obrigações - claro, as crianças não as têm - e compramos o jornal, sabendo que quando chegarmos a casa podemos deixá-lo de lado e ler o que ficou por ler do dia anterior.
O filme, finalmente. Um suplemento antigo que escapou à razia mensal de reciclagem - por pouco, diga-se - e finalmente o texto sobre o filme. Curioso como aquilo que irrita alguns - os pormenores que evocam directamente a linhagem da nouvelle vague - é o que marca a diferença para outros; no caso, para Luís Miguel Oliveira. A verdade é que a obra não se limita a convocar números de circo em homenagem a Godard e companhia - há personagens com vida lá dentro. Aliás, aquilo que o afasta dos modelos é precisamente isso: os indícios de realidade são mais fortes, a verosimilhança é mais evidente. Apesar das cantorias e dos mimos à maneira do cinema mudo - como acontece em "Les Carabiniers", de Godard, com que, de resto, "Em Paris" partilha mais do que os tiques formais; o tema do amor entre irmãos não é uma coincidência, embora o modo como é tratado por Cristophe Honoré se distancie do tom de fábula do filme de Godard. O filme fala da minha geração, é verdade. Quando Paul (excelente Romain Duris) coloca o disco de Kim Wilde a tocar, regressamos a um tempo em que tudo podia acontecer - a perspectiva que Paul precisa, um novo recomeço. O drama realista coabita de forma harmoniosa com o burlesco charmoso que envolve Jonathan (Louis Garrel) - na sua jornada pela cidade -, amante involuntário das mulheres que vai encontrando pelo caminho. Forçado, fantasioso? Não, se tivermos em conta o precedente da nouvelle vague. O cinema bem que pode prescindir da "suspensão da crença" quando quiser. É isso que o torna cativante. Já nos chega a realidade que continua a existir fora da sala escura. É claro que nada disto resultava se não fossem os diálogos elegantes e a mise-en-scène irrepreensível. O intimismo criado resulta da dinâmica entre estes dois elementos e torna uma obra que podia ser apenas um conjunto de citações mais ou menos óbvias num filme caloroso e tocante.

[Sérgio Lavos]

Minudências

Era o blogue Noite Americana, julgo, que tinha como mote falar do acto de ir ao cinema, e não do filme em si, ou melhor, falar de um filme sem esquecer o que é verdadeiramente importante: a razão de estar ali, sentado no escuro da sala, a ver aquele filme e não outro, ter comprado bilhete penalizando o orçamento mensal em vez de estar em casa a tornar a inutilidade da vida menos fútil. (Como? Estudando, por exemplo). Louvável empresa, de resto, e na verdade nunca plenamente concretizada. Um blogue é um blogue é um blogue. Gosto de quem escreve A Noite Americana, e por isso agradar-me-ia que escrevessem mais vezes. Mas adiante.
As minudências, as envolvências de uma ida ao cinema. No meu caso, a impulsividade é a chave da decisão. Por razões profissionais, a sexta-feira costuma ser o dia em que atiro os dados sobre as páginas abertas do jornal, confiando num palpite que quase nunca bate certo, e arrisco duas horas da minha vida em frente ao teatro de sombras. Perdoem-me o lirismo tosco, mas a verdade é que, caso ainda não se tenha percebido, é realmente um prazer ver desfilar à minha frente as imagens que um dia alguém decidiu serem a realidade - o cinema é mais que um simulacro. Se não acreditar nisto pela via da razão, aposto tudo na fé. E, por norma, os deuses costumam intervir cá em baixo através do jogo dos acasos.
Retrocedendo um pouco: impulso; acaso. Primeiro, não faço o que devia fazer (e que prazer que é não fazer o que se devia fazer), segundo, hoje vou ao cinema, e não vou ver nem a Maria Antonieta nem a Senhora das Águas, apesar do apelo recalcitrante. Paris... qualquer coisa. King, visito a livraria que reabriu, para mal dos meus pecados (ver texto anterior), e compro o bilhete. Para a sessão tal e tal, o Paris qualquer coisa, aquele feito por não sei quantos realizadores sobre a cidade. A senhora pergunta: é este? Não, não é. Não era. Era o "Dans Paris", de que tinha visto um trailer que me desagradara, por me parecer exibir tiques do cinema francês de modo particularmente irritante. Que importa, deixemos o acaso trabalhar.
O filme, apesar dos tiques, é um charmoso exercício sobre o amor fraternal, e valeu a pena a sucessão de desvios a que fui sujeito até desembocar na sala errada. Talvez desenvolva noutra entrada algo mais substancial, talvez não. Um blogue é um blogue é um blogue.

[Sérgio Lavos]

10/11/06

A pequena conversa

A "pequena conversa", tradução literal de "small talk", é um termo que soa mais adequado do que o vulgar "conversa fiada", principalmente se for aplicado, com mais ou menos propriedade, aos esforços titânicos a que, por vezes, nos obrigamos para olear as pesadas correntes da sociabilidade. Ignorar taxistas, exercício agradável, mas de difícil manutenção; é desagradável deparar com a antipatia provável de quem nos conduz como resposta à nossa misantropia teimosa. O pior é que não é um acto de coragem; é consequência de uma timidez paralisante. Todo o mal-educado esconde um terrível segredo: um medo de conversar, falar com estranhos, ou pior, com conhecidos de vista que espoletam imediatamente suores frios e revirares de olhos denunciadores. É que um tipo que seja tímido não consegue escapar; a linguagem corporal, tema de abundante literatura, é implacável. Contorcemos os dedos, reviramos os olhos, desviamos o rosto, mas lá estão eles, meio segundo depois de termos entrado naquele café que nos parecia tão acolhedor. Eles merecem a nossa pena, contudo. É que acaba por ser tão constrangedor para eles como é para nós o contacto imediato. Imagino: a bonomia deve sofrer horrores em presença de um acanhado intratável, de um introvertido disfarçando como pode, com arrogância e cinismo, a sua natureza maligna. Procuramos a saudação certa, em vão; eles debitam o discurso habitual, mas não sabemos como responder: "Então, tudo bem, a família, como vai?" Não sei, não quero saber, não lhe vou perguntar como está a sua família, que me interessa? Tudo bem, até aí vamos, mas daí não pode passar. Cultivar a banalidade não pode ser uma opção. Ou manter-se calado ou agir de modo realmente interessante, como os grandes conversadores o faziam no passado. Porque a timidez, quando não é patológica, reserva para os amigos o melhor que uma personalidade pode oferecer. Tudo se revela, se o ponto certo é tocado. Pode-se compreender o uso de substâncias desbloqueadoras de conversa, aceita-se tudo em nome da conversa. Um bom vinho, acompanhado de um ainda melhor prato, horas pela frente e a despedida a uma confortável distância. Se estamos bem, se tudo corre bem, querem que responda? Quando não somos obrigados a partilhar mais que duas palavras com estranhos ou conhecidos (e mesmo isso é muito), claro! A misantropia é uma bela planta que se deve cultivar com a maior parcimónia do mundo - e os amigos bem nos podem ajudar.

[Sérgio Lavos]

08/11/06

Gato constipado

Já percebi que o mundo se pode dividir entre aqueles que, como eu, acham a nova série do Gato Fedorento pobre, pobre, fraquinha (e depois do génio, a queda) e os outros que lhes conseguem perdoar o passo em falso, talvez por serviços prestados à nação. O complexo de Herman é, pelos vistos, contagioso...

[Sérgio Lavos]

07/11/06

Johnny Guitar

Se "Antes do Amanhecer", de Richard Linklater, passa por ser o grande filme romântico para uma puberdade tardia, facção anos 90, "Johnny Guitar" é o grande filme romântico da idade adulta - esqueça-se "Casablanca" ou "Pontes de Madison County". Defendo o primeiro com unhas e dentes, apesar de todos os defeitos. O pretensiosismo de uma geração ou a simples pretensão de toda a juventude? Estamos longe da educação clássica que resistiu quase até à primeira metade do século XX. No final do século passado, uma "boa educação" obriga a um digest de cultura pop intensivo. Uma ou outra passagem pelos clássicos, claro, mas os modernos, de Rimbaud a Kafka, passando por Virginia Woolf ou a "beat generation". As personagens de Ethan Hawke e Julie Delpy são mais que o ideal nunca alcançado da geração pós-moderna. Têm tanto de realista como de romântico, apesar da conversa sobre sexo - mas, lamentável, com mais conservadorismo que o trio de "Jules e Jim" e sem o dandismo que caracteriza uma época estilizada, a transição do século XIX para o século XX retratada no filme de Truffaut.
Mas a verdadeira transgressão acontece na obra de Nicholas Ray. Vienna (Joan Crawford) é mais do que o símbolo camp que muitos insistem em ver. É uma mulher forte num mundo de homens que deviam ser fortes mas acabam por se revelar fracos. Ema, a sua rival, no amor e no poder, manipula a turba de homens da cidade. Johnny Guitar (Sterling Hayden) é um pistoleiro sem revólver (óbvia referência freudiana), que sabe que apenas pode ser aceite por Vienna se abdicar dos seus impulsos violentos - que o tinham levado em tempos à partida. Um homem, para reconquistar uma mulher, tem de desistir da sua masculinidade agressiva - a dominação inverte os papéis tradicionais dos dois géneros. Nada de leituras alternativas da atitude de Emma (Mercedes McCambridge) e Vienna. A primeira quer apenas aquilo que Vienna já tem - e por isso morre. Vienna quer apenas um homem que a ame. "Nem bom nem mau", apenas alguém que possa amar. Estamos em território longínquo, de fronteira, transgredindo a moral da época e a moral dos filmes da época. Os fogachos de "screwball comedy" são memoráveis. O desejo é um diálogo trocado entre dentes, recorrendo a meias-palavras, desdéns e insinuações a cada frase. Mas Vienna sabe que Johnny é o seu homem - conhece-lhe as manhas, como diz ao preterido Dancin' Kid (Scott Brady) perto do final.
Falo de um western. Isso importa? Não posso deixar de gostar de "Antes do Amanhecer", por razões que pouco têm que ver com a razão. Pensando bem, "Johnny Guitar" não é um filme romântico nem um western. É um ensaio em imagens sobre a relação entre homens e mulheres. Uma bela lição sobre o modo como a mulher exerce o seu ascendente sobre a espécie masculina; o amor é apenas outra palavra para sexo - e não se pense nunca em sexismo ao afirmar isto.

[Sérgio Lavos]

Crash Music, Sweet Music


Quando entramos na sala de Crash Music reparamos nos discos partidos e sentimos os cacos debaixo dos pés. Andamos com cuidado. Se fôssemos crianças perguntaríamos: porquê partiu tudo? Talvez porque não gostava daquelas músicas. Porque um dos discos é dos Duran Duran. Ou porque a parede do museu pode ser a parede de fuzilamento, de execução. As marcas ainda são visíveis na parede, os riscos pretos vincando a parede branca, marca de terem sido atirados.
Porquê partiu tudo? Uma criança coloca esta questão perante a desolação daquela sala. A resposta até pode estar nas nossas costas, nas frases que se lêem na parede oposta à execução mas, ainda assim, parece não haver resposta. Procuramos sempre um significado, um simbolismo, uma referência que nos ajude a explicar a relação entre a obra e o artista, mas não pode simplesmente ter uma explicação directa? Ir com uma criança na idade dos porquês a uma exposição de João Paulo Feliciano é o maior desafio que uma mãe pode ter. Não só Crash Music mas também White Dust /Rusted Strings (pó de talco...), Sweet Music (gomas) e The Big Red Puff Sound Site (puff gigante onde se ouve nos auscultadores Teenage Drool de Tina and the Top Ten).

João Paulo Feliciano - The Possibility of Everything, na Culturgest de Lisboa até 30 de Dezembro.

[Susana Viegas]

05/11/06

Hal Hartley

Hal Hartley, a par com Jim Jarmusch, é a principal referência de uma geração indie de adultos reticentes, pela coolness que lhe está associada. Ter estilo significava frequentar cinema independente americano, ouvir Sonic Youth (que sobreviveram aos 80's) e ler Jack Kerouac - ainda, 40 anos passados. Ser cool era cultivar de modo displicente depressões existenciais fora de tempo, esquecer o Nietzsche da adolescência, ler de fio a pavio a bíblia amarela de Al Berto e frequentar sessões da Cinemateca tentando apanhar ainda o comboio da Nouvelle Vague - tanto tempo depois da partida. Dez anos depois, o gosto é mais seguro, e recordamos histórias antigas resgatadas ao tempo com a ajuda de instrumentos que em tempos abominávamos. Belo brinquedo o Youtube, assim como os packs de DVD's que compactam a infância em imagens que nos tínhamos esquecido de fixar. Dez anos depois, Adrienne Shelley ("Trust" é o seu "A Bout de Souffle") está morta, Martin Donovan passou rápido demais pelo mainstream do cinema americano, e por onde andará Elina Lowensohn - o IMDB dá algumas pistas, mas se desapareceu dos ecrãs desapareceu também das nossas vidas. Da trupe de Hal Hartley, apenas temos notícias de Isabelle Hupert, convidada do seu fabuloso "Amateur". Mas essa não é actriz de um realizador só, foi um acidente na filmografia do realizador. Dez anos depois, valerá ainda a pena exigir a presença de Hal Hartley nas salas portuguesas?

[Sérgio Lavos]

04/11/06

1966-2006

Adrienne Shelly começou no cinema como actriz-fétiche de um realizador independente, Hal Hartley, um realizador que agora as distribuidoras portuguesas fazem questão de esquecer, depois de Henry Fool, em 1997. Segundo os critérios da normalidade histriónica que marca certo tipo de cinema, não começara propriamente bem, isto porque ser fétiche de Hartley tem o seu preço - basta ver o modo como Adrienne, Martin Donovan, Robert Burke ou Chris Cooke actuam, de um modo hiper-artificial e ausente. Adrienne trabalhou em dois excelentes filmes de Hal Hartley: em 1989, The Unbelievable Truth e, em 1990, Trust.

[Susana Viegas]

03/11/06

Apenas um blogue

Nunca poderei conhecer todos os blogues que existem. Lê-los com a atenção que merecem, ainda menos. Ao ler blogues, sei que retiro tempo a outras actividades, mas também sei que ganho alguma coisa. Quem mantém um blogue gosta de olhar para o seu umbigo, apenas assim se percebe o elogio tantas vezes repetido pela blogosfera lusa: escreve-se bem aqui, melhor do que lá fora. Na prática, descobrimos que muitos bloggers de quem gostamos são também jornalistas ou escritores e os jornalistas ou escritores que não têm blogue e insistem em desdenhar o meio não merecem o esforço de cinco minutos despendidos na leitura daquilo que produzem. Pegamos em alguns livros, lemos as primeiras páginas e pensamos: volta lá para o computador, há centenas de actualizações à tua espera. Se me canso, regresso aos autores que valem a pena, e sei que esses não precisam das luzes da ribalta incidindo sobre os seus egos desmedidos - é por isso que pertencem ao meu círculo de eleitos. Cada vez mais me convenço que a literatura é 99% de ruído mediático e 1% de verdadeira força essencial - para a minha vida, pelo menos. A literatura é um sumo diluído, um reles refrigerante para os felizes 99% cento. Deviam formular uma lei para a literatura: não há malabaristas escritores. Ou se é uma coisa ou outra. À parte estas generalizações mais ou menos abusivas, não sei muito bem o que possa ser um escritor. Mas reconheço um bom texto quando o leio. Como aconteceu aqui, no blogue os-três-caminhos, de Isabel Cristina Rodrigues, descoberto através do blogue Manchas. E não é apenas um, são muitos. Sem o ritmo apressado da maior parte dos blogues, com a respiração lenta da verdadeira literatura. Apenas isto agora.

[Sérgio Lavos]

02/11/06

Sindicatos

Rui, talvez o meu post não merecesse uma resposta tão detalhada, e por isso mesmo faço apenas um comentário a um dos pontos do teu texto. Curioso que tenhas encanitado com o termo "assalariado". É que a mim aconteceu o mesmo. Pensei primeiro em "trabalhadores" e depois noutra palavra qualquer de que agora já não me recordo, e acabei por decidir-me pelo mais neutro "assalariados". Auto-censura. Isso mesmo. Censurei o que tinha escrito e acabei por utilizar um termo cuja conotação é claramente negativa para alguns. Insisti na palavra em parte por que acho o passadismo destes termos charmoso - faz-me lembrar tempos que não vivi - em parte porque sei que a direita fica com urticária ao ouvir falar em "proletariado" "luta pelos direitos" e, lá está, "assalariados". E já nem falo no censurado "trabalhadores". Ora, vejamos (assomo desnecessário de retórica): existirá outro termo que se adeque melhor a alguém que trabalha por conta de outrém, recebendo em troca do seu trabalho um salário? Não há. Não sei se é tipicamente marxista. Se calhar é-o porque Marx construiu a sua obra filosófica em função de uma defesa dos assalariados que trabalhavam nas fábricas inglesas e, lá está, nem sempre em condições que se pudesse dizer que fossem ideais do ponto-de-vista da felicidade humana. Em suma, e deixa-me abusar de outra expressão marxista, eram explorados pelo grande capital.
Sabemos que o marxismo-leninismo é uma utopia falida. O cadáver está aí à vista, e quando estrebucha ainda dá para rir um bocado - e falo de Chavéz e outras criaturas afins. Um dos resquícios da nossa revolução abortada são os sindicatos. Padecem do mesmo mal do PCP, porque a ele lhe estão associados (na sua maioria) - não perceberam que "os gloriosos amanhãs que cantam" nunca irão conseguir soltar um pio que seja. Azar. Mas a verdade é que ainda são um dos mecanismos de controle dos desvarios da liberalização económica. Que os há. Os deveres e os direitos de trabalhadores e patrões de que falas não são uma hipótese: eles existem, e são consagrados todos os anos nos acordos entre Governo, sindicatos e confederações de patrões. As três vertentes do tecido produtivo, sempre. Cada um defende os seus interesses, mas isso é natural. Ser anti-sindicalismo é ser contra um dos pilares que sustentam a economia - os trabalhadores (e peço desculpa por utilizar o pior termo possível). Não há produtividade em abstracto, tem de ser um facto concreto - só produzimos se estivermos satisfeitos com as condições de trabalho oferecidas - e negociadas pelos sindicatos. Com todos os defeitos que estas organizações ostentam. E eu até acho o Há Lodo no Cais um grande filme - e ilustrativo quanto baste dos abusos dos sindicatos.

[Sérgio Lavos]