27/10/06

Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos

A distância que separa a América real da América figurada parece, ao olharmos para um filme como "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos" (e nunca é demais relevarmos o trabalho dos pândegos que arranjam títulos destes em português - o original é "Little Miss Sunshine"), intransponível. A Hollywood liberal vinga-se dos pacóvios provincianos e moraliza ridicularizando hábitos que os americanos "educados" gostariam de não saber que acontecem em território nacional. No caso desta obra, os concursos de beleza infantil, essa abjecção, estética e principalmente ética, que sem esforço se aproxima da exploração do trabalho infantil, isto em plena democracia americana. Os realizadores (Jonathan Dayton e Valerie Faris) podiam ter ido mais longe na farsa, mas será uma questão que se imponha naturalmente? As opções decidiram-se à partida. O grupo de actores, casting perfeito, recusou ao filme o caminho da subversão amoral. Dayton e Faris acabam por construir um objecto invulgarmente conservador, apesar do especialista em Proust gay ou do avô heroímano. Em termos formais, o filme é plano, sem tiques de autor visíveis - e podia ter sido uma tentação, dada a aprendizagem no mundo dos videoclips -, mas há alguns enquadramentos que acabam por se destacar da planura: a paragem à beira da estrada, para consolo do adolescente problemático, deixa que o espectador espreite por uma nesga a paisagem americana - pela estrada fora, um desfilar contínuo de diners e estações de serviço, em tom de road movie familiar. Os gags resultam, pelo talento dos actores. A directora de casting mereceu cada tostão que ganhou. A fixar: Greg Kinnear (o pai), Toni Collete (a mãe), Steve Carell (o tio), Alan Arkin (o avô), Paul Dano (o filho) e a miúda adorável, a Miss Sunshine falhada do título, Abigail Breslin (a filha). A família, convulsiva, disfuncional (todas o são, é lugar-comum), imperfeita. E no entanto base de todo e qualquer indivíduo, como um nó que ao mesmo tempo prende e salva. A certa altura, diz a mãe: "We're family". Como se isso desculpasse tudo.

[Sérgio Lavos]

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