Há duas sequências que vale a pena ver em "A Dália Negra", de Brian de Palma: quando o corpo de Elizabeth Short é descoberto e o crescendo culminante que antecede a cena. E a sequência da escadaria, quando Lee Blanchard (Aaron Eckhart) é morto. Mas nada acontece por acaso. Ambas as sequências são decalques de outros filmes: no primeiro caso, de Palma emula a panorâmica inicial de Orson Welles em "A Sede do Mal", e a cópia é quase perfeita. A pequena cidade de fronteira no filme de Welles, montada num estúdio em Los Angeles nos anos 50, é evocada no cenário erguido na Bulgária por Dante Ferretti, longe no tempo e no espaço da Los Angeles dos anos 40 em que James Ellroy ambientou a história. Mas enquanto que Welles consegue, nesse movimento de câmara, transmitir o tom de decadência e corrupção trágico que marca todo o filme, de Palma apenas nos faz sorrir pela citação. Genial, apenas pelo tom pós-moderno e pelo reconhecimento de um estilo: o pastiche, mais ou menos óbvio. Para mais, o próprio livro de Ellroy é já assombrado pelas memórias cinematográficas dessa época (a sua infância), incluindo a obra de Welles - uma das cenas esquecidas na adaptação cinematográfica passa-se num México tão sujo e corrupto como o que aparece em "A Sede do Mal". Esta "boneca russa" de de Palma tem o seu paroxismo libidinoso na sequência da escadaria, declinada a partir de um plano decalcado de outro filme do realizador, "Os Intocáveis", que por sua vez já imita a cena da escadaria de Odessa em "O Couraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein. A partir daquele plano, que suspende o tempo fílmico e prepara o espectador para as imagens que se seguem, sabemos que a obra se vai resolver de modo dramático. O "pathos" repete-se numa auto-citação falsa, e portanto irónica: o desenvolvimento da acção afasta-se da técnica eiseinsteiniana do plano de pormenor intercalado com o plano mais afastado e aproxima-se de Hitchcok em "Vertigo", do jogo de picados e contra-picados, quando Madeleine (Kim Novak) - também nome de personagem em "A Dália Negra" - é empurrada do cimo da torre da igreja. No filme, é Madeleine (Hilary Swank) que empurra, e de Palma vinga a morte de uma personagem memorável da única maneira possível: através da imagem ficcionada.
Cada imagem, nos filmes de Brian de Palma, vale por muitas imagens: as de todos os filmes que são citados e homenageados em cada cena. E o jogo a que ele se propõe acaba por ser menos intelectual, como acontece, por exemplo, em Peter Bogdanovich, e mais lúdico. Tudo pode servir como material de trabalho. O que nos leva a uma pergunta: onde acaba o cinema dos homenageados e começa o cinema do homenageador, de Palma? Esqueçam a retórica: uma imagem apenas pode valer por si própria.
*Em cima, podemos ver Scarlett Johanson fingindo ser Kay Lake, fingindo ser Eva Marie-Saint em "Intriga Internacional". Já chega de citação?
*Em cima, podemos ver Scarlett Johanson fingindo ser Kay Lake, fingindo ser Eva Marie-Saint em "Intriga Internacional". Já chega de citação?
[Sérgio Lavos]
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