A natureza humana é, sem dúvida, curiosa: no mesmo passo em que se ensaia a liberdade se tolhe o avanço da mesma. Não falo de grandes problemas. Miudezas. O dia-a-dia. A admiração e a humildade, o engodo e a incerteza de sabermos ao certo aquilo que somos. António Lobo Antunes é um caso. Não é o único, nem agora nem se olharmos para trás, abarcando a memória. Mas quero pensar no pobre (e despeitado) Fernando Pessoa, escrevendo à noite depois do miserável mergulho na sujidade quotidiana, de olhos bem abertos perante a possibilidade da morte - e do esquecimento. Ignorando o futuro radioso da obra que lhe escapava dos dedos, a caminho da glória ilusória que apenas a arte concede. E imagino-o com poderes de vidência. Ouvindo, paciente, no escuro do seu quarto com vista para a tabacaria, António Lobo Antunes contorcendo-se na sua cadeira de entrevistado, incómodo na penosa posição de escritor menor, ao lado de Pessoa. É um sinal de grandeza, contudo. E Lobo Antunes sabe disso. Esquecer os grandes contemporâneos (aterradora, a ignorância em relação ao recente nobel Pamuk), elogiar uns quantos escritores menos lidos e menos conhecidos (sem a possibilidade de lhe fazer sombra), afirmar e reafirmar em tudo quanto é acção de propaganda a um novo livro que apenas interessa a literatura produzida num passado remoto. As manifestações de puro egocentrismo, no entanto, dispensam o juízo do tempo. Podem crer. Ao contrário do juízo dos críticos, que esse anda demasiado amestrado aqui no nosso cantinho tão necessitado de heróis (o exemplo dos Grandes Portugueses não é apenas um acaso). António Guerreiro, no Expresso, alude ao medo cénico perante o grande escritor. Aponta-lhe críticas, mas sempre usando de um finura que revela uma de duas coisas: ou respeitinho pela figura ou hesitação no julgamento. Havia de assim ser nos E.U.A. ou em Inglaterra. O respeito deve-se à obra, não ao putativo herói. E a obra de Lobo Antunes merece bastante respeito. O problema é o circo que a editora monta a cada nova saída. É o papel a que o escritor se dispõe de bom grado - o dos convites aos jornais por parte da editora (como aconteceu com a entrevista de Alexandra Lucas Coelho no Público), é o grande acontecimento com colagem a figura mediática para as novas gerações (Ricardo Araújo Pereira), é o enjoo de entrevistas condicionadas (?) à partida pela editora - é Alexandra quem diz que, antes da entrevista, o "auteur" estava com ganas de falar sobre a actualidade. Somos um país minúsculo, todos se conhecem. António Lobo Antunes não tem de recear qualquer crítica - apesar da lamúria repetida em anteriores lançamentos, de que o país não lhe liga.
Uma análise da obra? Ainda não li este último livro. Mas reconheço-lhe os tiques, aquilo que, para ele, passa por ser um passaporte para a eternidade: a fragmentação, a repetição maníaca, a ausência de preocupações com o enredo, a tentativa forçadíssima da originalidade a todo o custo, com algumas grandes frases pelo meio e outras deploráveis, ostentando um lirismo balofo e desusado - terrível nódoa sobre o pano. Porque se Lobo Antunes pretende que o seu texto se entranhe, não que seja compreendido pelo leitor, se a ele o que interessa são as sensações, não a história, cada frase conta - como sempre, aliás. A falsa polifonia - todas as personagens são uma só, imagino que a voz de um narrador metaficcional, omnipotente, que encarna em cada personagem lendo-lhe os pensamentos e sentido-lhe as sensações - é um logro. Não é original - a corrente de consciência é coisa antiga - e permite que interesses maiores cedam perante o exibicionismo palavroso do autor. Compreenderia o autismo de Lobo Antunes - se a cada frase não tropeçasse num cliché poético. Talvez seja esse o problema - a sua nunca resolvida velha questão com a poesia. O suave afago do país, no entanto, pode-lhe servir de consolo. Pobre Pessoa.
Adenda: um texto que diz tudo, do Luís Januário n'A Natureza do Mal.
Uma análise da obra? Ainda não li este último livro. Mas reconheço-lhe os tiques, aquilo que, para ele, passa por ser um passaporte para a eternidade: a fragmentação, a repetição maníaca, a ausência de preocupações com o enredo, a tentativa forçadíssima da originalidade a todo o custo, com algumas grandes frases pelo meio e outras deploráveis, ostentando um lirismo balofo e desusado - terrível nódoa sobre o pano. Porque se Lobo Antunes pretende que o seu texto se entranhe, não que seja compreendido pelo leitor, se a ele o que interessa são as sensações, não a história, cada frase conta - como sempre, aliás. A falsa polifonia - todas as personagens são uma só, imagino que a voz de um narrador metaficcional, omnipotente, que encarna em cada personagem lendo-lhe os pensamentos e sentido-lhe as sensações - é um logro. Não é original - a corrente de consciência é coisa antiga - e permite que interesses maiores cedam perante o exibicionismo palavroso do autor. Compreenderia o autismo de Lobo Antunes - se a cada frase não tropeçasse num cliché poético. Talvez seja esse o problema - a sua nunca resolvida velha questão com a poesia. O suave afago do país, no entanto, pode-lhe servir de consolo. Pobre Pessoa.
Adenda: um texto que diz tudo, do Luís Januário n'A Natureza do Mal.
[Sérgio Lavos]
2 comentários:
Meu caro Sérgio, com este seu texto só lhe posso assegurar que ainda não leu Lobo Antunes. Apenas passou os olhos pelas páginas, mas isso não chega.
Vá tentando.
Forte abraço,
Molero.
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