No Expresso desta semana, Joaquim Manuel Magalhães escreve sobre a consistência que uma obra pode ter nas mãos do autor. Fixa dois pontos opostos na sua cartografia da inconstância: o poeta que escreve, publica e não volta a tocar no texto, como se este, ao revelar-se ao mundo, deixasse de pertencer ao criador; e o poeta que emenda, rasura, apaga, reescreve. Como exemplo dos dois extremos refere Jorge de Sena – e sublinhe-se o pudor usado, obsequiando em avanço alguma eventual falha no julgamento – e Carlos de Oliveira. Interessante exercício, que não deixa de conter na entrelinhas uma auto-reflexão premente - e quase irónica. Joaquim Manuel Magalhães (JMM) pertence, desde a publicação da sua obra refundadora “A Consequência do Lugar”, ao segundo grupo, dos que não se demitem das responsabilidades perante o poema, considerando-o um erro em progresso, e por isso mais perto da vida, da matéria que imita. As conclusões a que chega JMM acabam por revelar mais sobre as suas próprias estratégias do que sobre as estratégias dos outros. É ele quem escreve: “Estas posições face à obra já escrita, que oscilam entre dois extremos – ou nunca alterar absolutamente nada do alguma vez publicado ou contínua e radicalmente sempre alterar em todo o momento em que entende fazê-lo – têm um significado profundo que ajuda a compreender não só o perfil psicológico do poeta em causa como os próprios mecanismos críticos do seu entendimento do que é a língua da literatura.”
Este parágrafo revela exactamente aquilo que JMM quer revelar: o entendimento da sua própria obra. Quase que se pode adivinhar em que grupo ele se enquadra, e a pista decisiva ele dá-a quando narra um encontro entre ele, Eugénio de Andrade e Carlos de Oliveira, em que este admite a sua vergonha em presença de figura tão admirável como Eugénio. “Desconfiança” e “incerteza", são os termos que JMM usa. Carlos de Oliveira emendava com medo do seu próprio falhanço. Jorge de Sena não errava – ou então tinha nojo daquilo que produzia e nunca mais se atrevia a olhar para os poemas; hipótese sem dúvida mais sedutora. Herberto Helder, desconfio, é de outra estirpe. Muda para produzir obra nova, o labor poético em Herberto é produção, máquina lírica, crescimento incontrolável, excesso e vertigem – que nunca pode acabar. Eugénio de Andrade alterava pouco, fazia acertos, reencontrava o rigor que a juventude não lhe tivesse permitido assegurar. E Joaquim Manuel Magalhães? Escreve como um crítico, adequa a obra antes publicada à linguagem da obra presente, torna o discurso coerente e homogéneo, modela os poemas antigos à forma actual, alisando as rugosidades de outras épocas – e, julgo, adaptando também a sua poesia do início ao modelo teórico que actualmente defende. Nada censurável, de resto.
[Sérgio Lavos]
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