17/09/08

Aquele Querido Mês de Agosto (2)

Apercebo-me, através da Sara Pais, de que Aquele Querido Mês de Agosto já foi visto por dez mil pessoas. Dez mil, um resultado que parece distante das centenas de milhar que a Soraia Chaves atraiu aos cinemas, mas que confirma a impressão com que eu ficara ao ver o filme: um potencial êxito também de bilheteira. E que bom é dizer "um potencial êxito de bilheteira" associado a um filme português. Adoro o sabor do jornalístico lugar-comum a propósito de um objecto pouco menos que perfeito, reflexão séria, como poucas vezes se vê, sobre a arte de captar a realidade.
Ao regressar a casa, em conversa, delirei ao imaginar a gente que é retratada por Miguel Gomes a ir às salas de cinema (de resto, esta ideia é glosada no filme, na cena da projecção do filme de zombies na aldeia); e não me pareceu irrealista ou improvável. O povo embarca nas dietas televisivas em que embarca porque, lamento o cliché, não tem escolha. Ainda que tenha, ainda que haja dezenas de canais disponíveis na TV Cabo, na realidade não tem escolha. Liga-se qualquer canal nacional e a enfardadeira vai vomitando a papa do costume: novelas pela noite fora, até às tantas, ou concursos que, fingindo serem cultos, promovem a ignorância dos concorrentes. Há escolha? Não, não há, porque uma sociedade mediática que se preze não deixa que a escolha seja verdadeira. É mais fácil e barato produzir lixo do que boa televisão, e a publicidade, essa bela invenção de um perverso demónio, encarrega-se do resto; ver novelas é sobretudo discutir o enredo com alguém no dia seguinte, é ler as dezenas de revistas que elevam ao estrelato a vacuidade e ter conversa para trocar sobre esse vácuo, e o circuito mediático que rodeia a televisão que temos limita-se a desfrutar das facilidades que lhe são concedidas.
Não seria difícil imaginar o filme de Miguel Gomes no prime-time da TVI, em vez da enxurrada de novelas; não sei até que ponto isto é uma coisa positiva, mas aposto que o realizador não se sentiria incomodado pela companhia. Será assim tão difícil dar ao povo o que ele não sabe que quer? Em vez de persistir em oferecer o que as elites julgam que ele pede? Manter no escuro o que nunca de lá deveria ter saído - a luta de classes não é apenas um velho conceito marxista; é o nosso dia-a-dia.

[Sérgio Lavos]

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