22/09/08

Deaf Sentence


Depois da aproximação ficcional à vida de Henry James em Autor, Autor, o regresso de David Lodge aos romances é um reconhecimento de temas e obsessões antigos. Não que Autor, Autor não fizesse sentido em Lodge, tendo em conta o seu percurso académico e a obra ensaística, sempre empenhados em descobrir os caminhos que se foram desbravando entre modernidade e pós-modernidade; Henry James acaba por ser um dos escritores que fabricaram a ponte entre dois tempos, com o seu apurado estilo de pendor classicista e a sua atenção a temas contemporâneos, muitas vezes polémicos, que por uma ou outra razão continuam a ser actuais.

Em Deaf Sentence, acompanhamos um período de vários meses na vida de Desmond Bates, professor de Linguística a gozar os prazeres da reforma, académico conservador sofrendo as contrariedades da velhice: o fantasma da impotência sexual, a decadência do corpo, a surdez. A velhice, em Lodge, apenas poderia ser retratada como uma farsa, nunca como tragédia. Desmond é surdo, e a situação apenas pode piorar. O seu pai, também surdo, vai tombando progressivamente na senilidade, por entre ataques de casmurrice e aflitivos episódios de amnésia. A sua mulher, por seu lado, tem um negócio que segue de vento em popa e uma vida social mais activa do que nunca. Os filhos vivem longe e levam vidas que ele não quer compreender na totalidade. E para cúmulo acaba por conhecer uma estudante americana de doutoramento que agressivamente se introduz na sua vida simples como um insidioso cancro. A velhice, para Desmond, não é uma sentença de morte, mas a surdez acaba por ser. (A dedicatória de Lodge aos tradutores justifica-se; não se imagina qual possa ser a tradução em português de Deaf Sentence, por isso boa sorte ao sofredor a quem calhou a tarefa.) O que se segue é um calvário de privações devidamente registado em forma de diário, com uma ou outra incursão pela ficção, em jeito de exercício de escrita criativa ensaiado pelo professor Bates – o narrador.

Na verdade, o livro não é (apenas) esta história. Como sempre em Lodge, o material narrativo é um pretexto para pensar a narratividade e a ficção enquanto construção artificial de uma realidade. O narrador do livro nunca é o autor (já sabemos há muito), apesar das coincidências biográficas entre os dois; e quando a narrativa salta para a terceira pessoa, o leitor começa a perceber o artifício em toda a sua plenitude. Mas o brilhantismo de Lodge é conseguir pensar a literatura, divertindo. Leitura fácil, calorosa, sustentada parágrafo sim, parágrafo não, pelo humor britânico que o leitor habitual identifica: aquela maneira de tornar o ridículo digno tanto de pena como de simpatia; as personagens criadas por Lodge, muitas vezes académicos pomposos e sexualmente inoperantes, homens em fatos cinzentos que sonham com a saia mais curta da mulher do colega da faculdade (como acontece em A Troca e O Mundo é Pequeno), transformam-se em heróis reticentes da idade moderna.

Imaginamos que possuir todas as ferramentas teóricas para poder detectar cirurgicamente as estratégias de um romancista seja uma vantagem injusta; Lodge sabe muito bem que mecanismos um escritor usa para criar vida e torná-la interessante para o leitor. Contudo, imaginamos também que o passo entre teoria e prática seja tão difícil de dar como sobreviver como um surdo num mundo repleto de sons. Lodge consegue desenvencilhar-se melhor da tarefa do que o seu pobre protagonista. E é sempre um prazer reencontrar velhos amigos.

(A edição inglesa é da Harvill Secker; por enquanto, não há informação sobre uma edição portuguesa; espera-se que a deglutição da editora Asa pelo grupo Leya não acabe com velhos hábitos, e Lodge continue a ser fielmente traduzido por cá).

(Texto publicado antes no Arte de Ler)

[Sérgio Lavos]

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