27/09/08

Wall-E


A infância é o período da nossa vida em que as coisas complexas parecem mais simples. Somos adultos, agora, mas haverá sempre perguntas para as quais não haverá resposta, e é curioso que tenha havido um tempo em que essa resposta existia.

Envelhecemos, complicamos. E erramos. Para que serve a arte? Nem sempre para divertir ou provocar o espanto; cada vez mais, a arte serve de porta de entrada a realidades que preferíamos não enfrentar. A arte moderna, sobretudo, especializou-se em copiar os nossos dias, esqueceu o seu propósito inicial: transcendê-los. Vamos a um filme para ver pessoas sofrer, como se o nosso sofrimento não bastasse. E não me falem da tragédia clássica: o ciúme de Otelo é insuperável; a culpa de Édipo é intransponível; o amor de Romeu e Julieta é sublime, divino. O maravilhoso deixou de ser uma categoria para grande parte dos criadores modernos. Em consequência disto, os critérios estéticos mudaram: relevantes são agora as intermináveis conversas sobre nada de Beckett em desfavor do mundo criado por Tolkien. Nada contra, apesar de não se perceber porque não serão as duas obras manifestações do mesmo espírito (e perdoem-me os propósitos românticos).

E a infância, que tem a ver com isto? É verdade que a pós-modernidade arrancou a sério (Lawrence Sterne foi um avô excêntrico e extemporâneo) com duas obras que teimam em ser consideradas como de literatura infantil ou juvenil: Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho. Mas o que se seguiu tem sido uma tentativa séria de manter as crianças no seu mundo, encarando-as como adultos em ponto pequeno ou pior, adultos imperfeitos. Apesar de todos os psicólogos infantis que aparecem na televisão a falar com voz de algodão doce, como se as crianças sofressem de sensibilidade auditiva extrema, nunca como agora elas tiveram tão pouca atenção. Todo o conhecimento pode ser adquirido pela literatura, mas já ninguém conta histórias às crianças sem receio de provocar medo ou ferir susceptibilidades; as fábulas, que, mais do que ensinar uma moral, estimulam a imaginação da criança, habituando-a a relacionar acontecimentos e a colocar-se no lugar dos outros, são um género em vias de extinção. E a praga dos contos tradicionais politicamente correctos ainda não terminou.

E o que nos pode salvar o futuro? Os adultos Peter Pan que ainda sonham com tempos de outra época, os criadores conservadores que, ainda que com outros meios, continuam a efabular o mundo. O cinema, a animação, é o meio; por isso mesmo, um filme para crianças sofrerá sempre o preconceito de todos os adultos, e a injustiça tantas vezes é radical neste aspecto. Se as longas-metragens de Miyazaki, por exemplo, são obras de arte absolutas, alguns filmes produzidos na era digital conseguem ser únicos na forma como conciliam a apetência de um público abrangente e o gosto crítico; são as obras-primas que nunca irão ser consideradas como tal, apenas por pudor dos adultos que estabelecem o cânone - mas esperem até as crianças que agora se maravilham com filmes como Shrek, Toy Story, Finding Nemo ou Wall-E crescerem. O mundo será delas. E será melhor.

(Continua)

[Sérgio Lavos]

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