Há algum masoquismo nas intenções - e talvez sadismo nas conclusões - de repisar um tema já tratado em textos anteriores. A preguiça reclama do trabalho que dá pesquisar nos arquivos do antigo blogue. Não irei lá. Mas como se aproxima a minha visita a Londres (dado inegavelmente de natureza biográfica, registe-se para memória futura), recordo a passagem de "Austerlitz", de W. G. Sebald, quando ele visita o museu de Greenwich, devotado aos instrumentos de medição e afins. Na altura escrevi uma charla memorialística, com um tom vagamente saudosista e, consequentemente, rançoso. Irei lá voltar, quem sabe, e percorrer o meridiano como qualquer turista, e talvez entre pela primeira vez no museu. Sebald ter-me-à convencido - a desgraça da literatura.
Ou convenceu-me Enrique Vila-Matas, ao convocar Sebald a propósito da sombra que paira sobre "Doutor Pasavento", Robert Walser. É verdade - não uma verdade de romance, como algumas inventadas por Vila-Matas em obras anteriores - verdade verdadinha que o pai de Sebald morreu exactamente no mesmo dia de Walser; e é também verdade que ele tinha o hábito de dar grandes passeios - como Walser. Que as personagens de Sebald cultivem também este gosto pela deambulação não é apenas um acaso. Em "Austerlitz", o narrador entra de olhar pasmo no museu de Greenwich e dedica-se ao prazer da observação minuciosa. Há uma impossibilidade concreta de sentirmos a passagem do tempo. O tempo é interior, qualquer um sabe, mas não os instrumentos que inventamos para o domar. Observar relógios, cronógrafos, sextantes e astrolábios pode-nos conduzir a um vislumbre da verdade da natureza humana, a sua força criadora. Numa paisagem de ruínas - as aventuras da pós-modernidade têm este infeliz defeito - estes vestígios de outras eras apenas fazem sentido em museus; como as estátuas.
Mas decido sair de Austerlitz. Reentro em Vila-Matas e cito uma citação (não sei se inventada ou real) de Alan Pauls: "É uma experiência única, adormecer num filme de Tarkovsky e acordar de repente com uma das suas imagens". Lugar-comum, já me sucedeu várias vezes. Recordo uma sessão na Cinemateca, lembro Stalker. Acordei no plano mais significativo do filme: a mão dentro de água, a água a correr, escolhos em volta. Entre Tarkovsky, continuação de um sonho, e a paisagem devastada de Sebald, há mais que um rio a correr.
Ou convenceu-me Enrique Vila-Matas, ao convocar Sebald a propósito da sombra que paira sobre "Doutor Pasavento", Robert Walser. É verdade - não uma verdade de romance, como algumas inventadas por Vila-Matas em obras anteriores - verdade verdadinha que o pai de Sebald morreu exactamente no mesmo dia de Walser; e é também verdade que ele tinha o hábito de dar grandes passeios - como Walser. Que as personagens de Sebald cultivem também este gosto pela deambulação não é apenas um acaso. Em "Austerlitz", o narrador entra de olhar pasmo no museu de Greenwich e dedica-se ao prazer da observação minuciosa. Há uma impossibilidade concreta de sentirmos a passagem do tempo. O tempo é interior, qualquer um sabe, mas não os instrumentos que inventamos para o domar. Observar relógios, cronógrafos, sextantes e astrolábios pode-nos conduzir a um vislumbre da verdade da natureza humana, a sua força criadora. Numa paisagem de ruínas - as aventuras da pós-modernidade têm este infeliz defeito - estes vestígios de outras eras apenas fazem sentido em museus; como as estátuas.
Mas decido sair de Austerlitz. Reentro em Vila-Matas e cito uma citação (não sei se inventada ou real) de Alan Pauls: "É uma experiência única, adormecer num filme de Tarkovsky e acordar de repente com uma das suas imagens". Lugar-comum, já me sucedeu várias vezes. Recordo uma sessão na Cinemateca, lembro Stalker. Acordei no plano mais significativo do filme: a mão dentro de água, a água a correr, escolhos em volta. Entre Tarkovsky, continuação de um sonho, e a paisagem devastada de Sebald, há mais que um rio a correr.
[Sérgio Lavos]
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