16/02/07

Escolhas

Ler uma entrevista de Enrique Vila-Matas pode ser uma acção arriscada. Há quem julgue que apenas jogar na bolsa e praticar mergulho com tubarões - que, no fundo, é a mesma coisa - são actividades perigosas, mas a verdade é que a literatura não oferece segurança nem porto de abrigo a ninguém. Um escritor mente, por defeito profissional ou por hábito, obsessivamente e de forma ingénua, como se a mentira fosse uma segunda pele. Gosta tanto da mentira que não a consegue abandonar quando lhe é exigida a verdade. O horror que o escritor tem às entrevistas nasce deste apego doentio ao delírio, à invenção, uma vontade irrepremível de ser outra coisa qualquer que não ele próprio. Vila-Matas, instalado (ele diz) na sua casa em Barcelona, respondeu às perguntas da jornalista. Incauta, imprevidente, que deixou cair todos os trunfos que tinha na manga. Deixar que o escritor responda por escrito a perguntas sobre a vida é um convite aberto à falsificação, à invenção de outra vida. Um escritor a falar, por outro lado, é quase sempre um peixe fora de água, tentando sobreviver no meio hostil da palavra falada. Há hesitações que se lêem nas entrelinhas, ausências, contradições. Nem o mais hábil dos escritores consegue ser coerente quando fala. E esta incoerência, para a felicidade do leitor mais atento, aproxima-se tanto da verdade que quase a pode substituir na perfeição - o caos da linguagem substituindo o caos da vida humana, bela utopia.
Mas Vila-Matas deu por escrito as respostas, e ninguém pode afirmar com certeza o grau de realidade que elas deixam passar cá para fora. Ele fala de uma crise pessoal; e qualquer crise leva a uma transformação, a uma mudança. Que, continua ele, se começa a notar na sua escrita. Espero para ver, mas desconfio. No caminho que Vila-Matas decidiu percorrer havia apenas um final a assinalar; e esse fim, o da literatura como espelho da imaginação e daquilo que diferencia os seres humanos do resto dos animais, conduzia ao desepero da não-produção. Vila-Matas, ao questionar os fundamentos do seu ofício, questionava a sua própria existência. Sentiu na pele a resposta da vida que imitava - resistiu ao niilismo (diz) e reecaminhou a sua escrita noutra direcção. Entre a sensatez da derrota e o absurdo do desaparecimento, fez uma escolha, contrariou a decisão do seu herói Robert Walser.
Eu bem posso continuar a escrever sobre uma ficção. Nunca saberei ao certo.

[Sérgio Lavos]

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