19/02/07

Bartlebys

O cinema também se tem interessado, aqui e ali, pelo fenómeno bartleby. A mitologia do escritor que desaparece pode ser um bom tema. Tem glamour e tem mistério, tem o questionamento fundamental da arte; não tem romance nem morte, mas tem uma coisa melhor: o desaparecimento. Tratado assim, desligado da realidade, há, que me lembre, "Sous le Sable", de François Ozon. Dir-se-ia que não tem nada que ver com Bartleby. Talvez tenha. Talvez seja mais estimulante achar que o marido desaparece de forma voluntária, e não que tenha morrido no mar. De qualquer modo, o tema óbvio do filme é a perda, a quebra no fio narrativo da realidade que qualquer mudança provoca (contra o conselho comum que obriga as pessoas que sofrem esse corte ontológico a retomar o ritmo normal da vida - como se o pudessem fazer). Pensar a obra de Ozon pelos olhos de quem procura gente com a melancólica condição do desvanecimento, todavia, conduz-nos a realidades que estão para lá do filme, quem sabe se para lá do pensamento do realizador. Regressemos portanto a Bartleby. Por exemplo, William Forrester no mais ou menos ingénuo "Finding Forrester", de Gus van Sant. Mais ingénuo pela repetição do tema em relação a "Good Will Hunting" - o jovem génio conturbado em busca do mentor esquecido de si mesmo. Mas menos pela evocação de um J. D. Salinger perdido no Bronx (terá lido o autor do argumento a história em que Vila-Matas encontra o escritor num anónimo autocarro nova-iorquino?), lutando pelo seu direito à reclusão. O que é inteligente no filme é o facto de Forrester (Sean Connery) não ter simplesmente deixado de escrever - ele persiste, imperturbável, na continuação da sua obra. Mantém o ritmo, a rotina, os fetiches da escrita. Mas já não quer publicar, não quer saber do mundo que continua a rodar fora do refúgio onde se encontra. Três ideias de notar no filme: a agarofobia, relacionada de forma determinante com o sibaritismo da personagem; aquela velha ideia de que se queremos nos esconder do mundo, então o melhor é encontrar um esconderijo o mais perto possível do centro de tudo - no caso, o Bronx, a dois passos do coração de Nova Iorque; a tal insistência na escrita - o verdadeiro bartleby nunca desiste de ser ele próprio; simplesmente desiste de ser ele próprio no mundo. E desaparece.
A escrita precede a vida e eleva-se acima dela. Quantos originais estarão guardados na gaveta de J. D. Salinger?

[Sérgio Lavos]

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