Li, e aconselho a quem me lê que o faça também, os dois textos do regresso de João Ventura ao O Que Cai dos Dias, dois posts certeiros sobre Herberto Helder, e depois da poeira assente vale a pena voltar ao tema. Mas por outra porta, a que António Guerreiro me entreabriu hoje, no Expresso - o texto sobre a biografia de Kafka que está a ser publicada neste momento na Alemanha, três volumes dos quais falta apenas sair o dedicado aos anos de infância e adolescência do escritor.
O que existe de comum entre estes dois autores? A vontade de desaparecimento, diluição na banalidade dos dias. Kafka, escritor desconhecido na sua época, afirmou ser ele a própria literatura, mas o interesse de escrever uma biografia monumental sobre um homem com uma vida lisa, sem peripécias ou planaltos, que contudo deixou uma vasta bibliografia íntima - diário, cartas, etc. -, reside precisamente no enigma do confronto entre a sua afirmação pública e a produção artística privada. O que levou aquele homem a escrever, a "tornar-se literatura"? A dissecção minuciosa dos dias, das relações, do movimento, seria um bom ponto de partida para encontrar uma resposta, mas dificilmente será um ponto de chegada. Os romances inacabados de Kafka eram iguais à sua vida, ele afirmou-o no diário, e esta construção de uma personagem que se ausenta, que tende para o silêncio, faz parte do discurso de afirmação enquanto escritor que ele procurava.
Herberto Helder, na sua procura do poema contínuo, sem princípio nem fim à vista, na sua identificação com essa obra em passagem pela matéria onde se inscreve, evidente na continuidade entre autor e título da obra (Herberto Helder ou o Poema Contínuo, numa anterior edição da obra poética) - como bem notou António Guerreiro na sua recensão a A Faca Não Corta o Fogo -, é a versão possível desta vontade de imanência do criador. Possível porque a sua consagração funciona como obstáculo à execução do objectivo - ser Herberto Helder é incompatível com a sua condição de poeta maior do século XX, e imaginamos que as duas possibilidades apenas se podem excluir mutuamente. A sociedade do imediatismo e do mediatismo fabrica personagens que não passam de figuras vazias povoando as narrativas do leitor, essa categoria volúvel; o leitor, mais do que completar o circuito de criação de uma obra, corrompe a obra que recebe, transformando-a em algo dissemelhante daquilo que era a intenção do autor. Kafka, personagem refugiada na sua própria obra, não sofreu este destino - o seu desaparecimento foi completo, e talvez tenha apenas fraquejado no fim, ao não condenar ao fogo os seus escritos.
A opacidade de Herberto não chega a ser um perfeito truque de ilusionista; ele é um desaparecido em eclipse, que julgamos ver quando olhamos para o lado. A obra continua.
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