Gonçalo M. Tavares publicou, em seis anos, 23 livros. Será necessário algum rigor para escrever tal número. Atenção, não foram 38, como escrevi (antes de verificar no Público o número correcto), nem 36, como julgo ter afirmado em conversa com alguém (já não me lembro quem).
Tudo o que tem vindo a lume, quase tudo, foi escrito durante um longo período de tempo, e depois Gonçalo começou a publicar. Quando começou a publicar, deixou de escrever. Até começar a publicar, escreveu. Todos os dias, já o disse em entrevistas, de manhã, nos cadernos - pretos ou não. Cada texto publicado vai para uma colecção, organizada de acordo com o caderno em que foi escrito.
Dos primeiros livros publicados, avulta O Senhor Valéry, o primeiro da série dos senhores. Esta série inventa, mais do que personagens vagamente inspiradas em escritores, um espaço para as colocar, um bairro. Neste bairro elas existem, mas raramente se cruzam. Conversam, encontram outros habitantes das vizinhanças, mas principalmente surpreendem-se com o bairro onde vivem. O carácter infantil das histórias dos senhores passa sobretudo pelo modo lúdico com que são encarados os pormenores existenciais, as dificuldades do mundo. Cada situação é enfrentada com a seriedade de um adulto e resolvida com a displicência de uma criança. A infância é o tempo em que a maior parte dos problemas que nos interessam é ultrapassada: como contornar as dificuldades que os outros nos colocam, como aprender a confiar neles, e como contar com isto para que o mundo se molde à nossa vontade. Crescer é como construir um bairro: alicerçar as casas, erguer as paredes, pôr gente a viver lá dentro, construir as ruas que levam a outras casas, olhar o quadro de fora, como um arquitecto divino.
O método de Gonçalo M. Tavares é frio, consegue descrever o quadro de maneira grandiosa. À puerilidade do bairro dos senhores é acrescentada a tetralogia do reino (A Máquina de Joseph Walser, Um Homem: Klaus Klump, Jerusalém, Aprender a Rezar na era da Técnica). Neste reino, esquecemos os problemas de infância, os jogos que nos serviam para resolver esses problemas. As personagens da série são racionais, prodígios de raciocínio, frias máquinas obedecendo a frios desejos. Neste mundo desolado, a violência germina facilmente. Se no bairro dos senhores a desordem ameaça a cada página, no Reino o mundo é perigoso. E o perigo não vem do exterior, mas do interior; a violência nasce da razão. Todos os grandes ditadores da História fundaram os seus reinos de terror na técnica, num método. Não há qualquer sugestão de irracionalidade no acto de destruir outro homem; a intenção é puramente da ordem do pensamento concreto, sem vestígios de imaginação, no sentido em que, para aceitarmos o outro, precisamos de imaginar o que ele é, o que sente.
A permanente tensão da série o Reino transporta-nos da infância para a idade adulta: o tempo da entropia progressiva, da ameaça de destruição iminente. A violência como motor da evolução humana.
[Sérgio Lavos]
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