O que a adaptação de Fernando Meirelles de Ensaio Sobre a Cegueira deixa de fora é a visão comunista que Saramago impõe ao romance. Simplificar, simplificar, até chegarmos a território neutro, no qual não se perceba se a história dos cegos é uma parábola que descreve a natureza humana ou uma utopia libertadora, típica de uma certa visão de esquerda que ainda não foi extinta.
O grupo de cegos que sobrevive é, no romance, uma comuna que aceita docilmente a autoridade de um líder (messiânico), que, ironicamente, é conduzido por alguém que tem uma qualidade que a torna superior aos que seguem: a mulher que vê. Se o moralismo de Saramago pretendia denunciar a maldade inata do Homem, personalizada no déspota da camarata do lado e do cego antes da cegueira que o conduz, acaba por não conseguir. Isto seria uma possível leitura. Mas julgo que a verdadeira, apesar de entrar por caminhos conspirativos, é esta: ao fascismo violento do grupo liderado pelo vilão do livro opõe-se o sentido comunitário do grupo da mulher que vê. A resposta que resta é: será ingénua a "cegueira" de Saramago, ao não perceber que é tão totalitária a liderança subterrânea da mulher que vê como o maquiavelismo do cego que manipula o déspota? A bondade da comuna, romântica segundo o olhar de Meirelles, é o exemplo mais evidente da ideologia moralista do romance de Saramago. A imagem da coluna de cegos a caminhar pela cidade, fila ordeira, líder vidente conduzindo os restantes numa clara hierarquia, é um delírio que Orwell não desdenharia; a diferença é que, se este tratasse o tema, seria sempre com o objectivo claro de denúncia. Saramago, como sabemos, nunca o faria - e não fez. E Meirelles, terá percebido a complexidade da manipulação saramaguiana?
[Sérgio Lavos]
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