24/10/08

To peep

A primeira imagem de Peeping Tom, de Michael Powell, é esta; um olho que nos observa, azul, de mulher, a pele de mulher marcada por sardas - as ruivas, diáfanas, multiplicam-se no filme, confundindo-se e confundindo, um olho que nunca saberemos de quem é. O olho, o buraco, e a lâmina escondida pelo tripé da câmara; o espelho reflectindo o medo da vítima. 
É extraordinário como este filme trouxe a desgraça ao realizador, depois de uma carreira quase gloriosa. Recuperado nos anos 80 por Martin Scorcese, estreou apenas nessa década nos E.U.A. A razão da passagem aos subterrâneos da história do cinema foi, imagine-se, a crítica. Arrasadoras, "inacreditáveis", nas palavras de Scorcese, unânimes, ao que parece, na altura em que estreou em Inglaterra. Na sua autobiografia, Powell cita escrupulosamente os seus detractores e todo o moralismo que eles destilaram na altura: acusado de ser um filme escandaloso, pornográfico, demente, de tudo e mais alguma coisa, terá sido esta uma rara ocasião de testemunhar o delírio total da crítica, incapaz de separar ética e estética, horrorizada com a simpatia que Powell aparenta ter pelo assassino voyeurista interpretado pelo, até aí, anódino actor Karlheinz Böhm (o imperador Francisco José da série de filmes sobre a imperatriz Sissi, com Romy Schneider).
A atitude de Powell, depois de o filme ter sido revalorizado por uma nova geração de realizadores, foi um acto de fria vingança sobre os pobres e esquecidos críticos que arruinaram a sua carreira. Mas a história repete-se; quantos críticos de agora terão noção do real valor das suas palavras? Das suas relativas opiniões?

[Sérgio Lavos]

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