16/10/08

A Faca Corta o Fogo

Por vezes, basta um juízo de valor para espoletar as mais inopinadas razões. Coisas simples, sem importância, vagas opiniões. Foi isso que sucedeu com o meu texto sobre o livro de Herberto Helder, e sinceramente talvez não mereça a atenção que terá tido. Para que se prove este facto, posso dizer que cheguei a começar um texto mais desenvolvido sobre o tema, a que decidi atribuir mais sensato destino: o desaparecimento.

Mas, as coisas simples: como o Henrique Fialho, comecei a gostar de Herberto Helder muito cedo. A sua obra poética, o tijolo comprado na livraria Portugal, no Chiado (lembrar-me do lugar e da circunstância em que comprei a Poesia Toda esclarece sobre a importância que a obra teve em mim), formou não só muito do meu gosto posterior, mas também a escrita; e, principalmente, motivou-me para a escrita (com consequências mais ou menos nefastas). Cada geração terá os seus heróis; a minha é herdeira sobretudo de Al Berto, primeiro, e depois de Herberto Helder. Bastava ler o suplemento DN Jovem nos anos 90 para se perceber isso: as epígrafes repetiam-se de número para número, e eram sempre os mesmos nomes, estes nomes, e também Yeats, Hölderlin, Novalis e o ocasional Nietzsche. Será esta a família de poetas que se dedicam a um registo que João Camilo, simpaticamente, apelida de “porque não te calas?”. A poesia do “absoluto”, e não do absoluto metafísico, antes egocêntrico, a poesia que queima o terreno em redor, (e Herberto, no fim, também nos "deixa sem nada"; simplesmente, o caminho tomado é outro) afirmando-se de forma transcendental não apenas em relação à realidade, mas sobretudo, e no caso que nos interessa, na sua relação com a obra de outros poetas.

O facto de, enquanto leitor, admirar a poesia de Herberto Helder, não evita que a leitura da obra seja feita de modo crítico. O que, no caso de Herberto, é fácil: o trabalho de desbaste que ele tem levado a cabo na sua produção poética tem limpo de todo o joio o tal tijolo que eu, há quinze anos, comprei na livraria Portugal, seria uma bela tarde de Primavera.

Ora, julgo que existe uma certa confusão entre ética e estética, principalmente no texto do Henrique: que o novo livro de Herberto seja tratado como “acontecimento” - no sentido mediático do termo: fenómeno de curta duração empolado por uma corrente de opinião dominante na imprensa – não deve obstar a que exista uma leitura crítica do mesmo. E parece-me que recusar, simplesmente, o burburinho, é um erro, porque Herberto, quer se queira ou não, não é propriamente uma Margarida Rebelo Pinto. Há inéditos de um poeta importantíssimo da segunda metade do século XX a serem publicados, muitos anos depois dos últimos terem saído. Não é importante? Não são importantes, os inéditos? Deixemo-nos ficar por aqui, se é essa a discussão. Não gosto, porque sim, não é razão. Eu poderia deixar aqui as razões pelas quais gosto da poesia de Herberto, mas esse texto, como afirmei ao início, não será publicado. No limite, claro, é uma questão de gosto. O problema é a não-crítica que se tem produzido a propósito de A Faca Não Corta o Fogo, e desta situação são culpados não só os que recusam a predominância de Herberto na poesia portuguesa actual, como também, e principalmente, os admiradores que escrevem para jornais e não quiseram, ou não puderam, enfrentar de forma séria a trabalho crítico a que se dedicam. Daquilo que li, apenas o texto de António Guerreiro, no Expresso, se destaca positivamente. Que não há risco nos suplementos literários dos jornais portugueses, estamos cansados de saber, mas insisto: por que razão é que o Ipsilon, por exemplo, no lugar de ter entregue a recensão a Manuel Gusmão, que, enquanto poeta, claramente pertence à mesma família de Herberto, não o fez a Pedro Mexia, denodadamente distante do autor? E Manuel de Freitas, que, apesar de ter escrito um ensaio sobre o poeta, também se encontra na margem oposta àquela onde Herberto se coloca, não poderia também ele ter escrito uma recensão para o Expresso? O não-criticismo português é assim: as escolhas feitas são sempre as mais fáceis, principalmente no caso das vacas sagradas da cultura portuguesa. Mas até uma vaca sagrada trabalha melhor se for picada, e não me parece que a diversidade crítica seja um aspecto que prejudique a obra criada – já o ego do escritor, não ponho a mão no fogo (sem faca); mas o respeito que uma obra deve merecer bem pode dispensar o uso de paninhos quentes no tratamento das divindades da literatura.

Esta fraqueza da crítica leva a que os aspectos que estabelecem a diferença em relação à anterior produção poética mal tenham sido aflorados nas críticas ao livro. Porque, parece-me, há de facto mudanças, desvios, transgressões, transformações. O hermetismo, palavrão que tantas vezes se usa a propósito de tudo e de nada na poesia de Herberto, deixou de ser uma intenção, um motivo. Nota-se uma respiração diferente, uma abertura, que se evidencia quer no campo lexical, quer no semântico. Há brincadeiras, remissões para a realidade quotidiana, alusões, ensaios num registo mais vernacular, menos “elevado”, que têm de ser considerados. Qual a razão, o que levou ao movimento, quando o mais expectável seria a permanência? É que, lendo a maioria das recensões que foram publicadas, até parece que nada se acrescenta ao universo temático e formal neste novo livro. O tal endeusamento em vida de um escritor, que prejudica a interpretação crítica da obra.

A leitura que João Camilo faz do poema que eu publiquei é correcta, mas não completa. Mas o texto dele levanta questões mais importantes, a que responderei, no seu devido tempo.

[Sérgio Lavos]

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