04/06/07

Arte e imanência (3)


engraçado que tenha enveredado por tal exercício de hermenêutica. Engraçado. Eu próprio já fui tentado a fazê-lo, como pós-modernista que sou. (Também gostaria de ser um dos pós-modernos, mas aí pareceria que era verso de uma letra do Rui Reininho, e há coisas que eu não posso tolerar).
Ora, não é necessário ser tão paciente (ou insone) para perceber contradições no meu discurso. A verdade, cara Miss Allen (mas eu julgo que já tinha percebido isso) é que ando perdido. Eu sou de agora, claro, nasci depois do 25 de Abril, sou filho da evolução. Mas antes de mim, já muita gente andava perdida há, pelo menos, trinta anos. E não era só aqui, no mundo inteiro. O problema da nossa época (além da excessiva crença no fatalismo do fim da fé) é não saber em que prateleira arrumar o tempo que vivemos. Mas, imagino eu, terá sido sempre assim. "Narrativa exageradamente classificatória"? Será, mas precisamente porque os historiadores e os críticos de agora não têm a vida facilitada. Todos se colocam de fora do círculo. Ninguém quer ser pós-moderno. Tempos houve em que meia-dúzia de génios loucos se juntavam a meia-dúzia de loucos que se julgavam génios e formavam um grupo. Reuniam-se com intenções de, no mínimo, mudar o mundo - quase sempre apenas conseguiam mudar as suas próprias vidas. Os "ismos" saltavam-lhes da boca para fora como pipocas. Todos os conhecem. Mas cada historiador de arte tem o fardo que merece. Os actuais resignam-se ao terror de terem que viver com a desterritorialização de toda a arte. Cada artista é uma ilha. E os arquipélagos há muito entraram numa oportuna deriva. O mais interessante é que todo o pensamento pós-moderno teoriza sobre seu próprio fim. Ou, num sentido mais lato, sobre o fim do pensamento. De Jean Baudrillard a Slavoj Zizek, os fins vão-se repetindo numa infinita cadeia. Ter medo de "perder o pé" faz parte desta maneira de pertencer ao tempo presente.
E o tempo, lá está, fugiu-nos de debaixo dos pés. Não foi preciso nenhum Einstein para provar isto. O regresso a um tempo mirífico que Nietzsche perseguiu durante toda a vida contemplava não só um movimento em direcção a um tempo que passou (o tempo dos antigos), mas também um movimento em direcção a um futuro provável. A actualização desse tempo não foi possível. Mas serviu de prenúncio para o século em que o tempo deixou de fazer sentido. Um mundo sem Deus é um mundo que corre fora do eixo do tempo. Não se trata aqui de "desacreditar o tempo". Já houve alguém que fez esse trabalho sujo. Nos últimos cem anos, nenhuma teoria conseguiu inverter o curso da História - regressamos a uma era que nunca existiu, a era de Dioniso - mas apenas porque alguém falou disso em tempos. As palavras produzem o tempo - "e a luz fez-se". "Precisamos da tabela cronológica"? Apenas porque não temos mais nada a que nos agarrar.
Mas falávamos de arte. Julgo que as minhas contradicções não são apenas um exercício de estilo (mas já nem sei até que ponto é que eu acredito nisto). Se reparar, quando eu escrevo que "o passado já não interessa" não quero afirmar que o artista não se interessa por quem o antecedeu. Não vou citar, mas insisto neste ponto: o que mais interessa ao artista é matar o pai, para poder criar a partir daí a sua obra, livre do peso da hierarquia. Criar é um exercício de liberdade, sempre absoluto. A "angústia da influência" é o cordão umbilical que, enquanto não é cortado, estrangula a critividade necessária para a produção de novidade, diferença. O "reconhecimento do passado" é operativo. A obra-de-arte é reacção e apenas se torna decisiva quando deixa de ser repetição e passa a ser diferença (Deleuze disse-o em vários livros). Ora, não existe nenhum catastrofismo nesta ideia de esquecer o tempo que passou. Vivemos fora do eixo do tempo (um suave exercício de loucura controlada) e por isso podemo-nos dar o luxo de deitar fora tudo o que evitamos repetir. O problema é que já não existem vanguardas. Quase tudo é repetição, emulação dos mestres. Todas as características associadas ao pós-modernismo (a paródia, a auto-citação, o pastiche, a intertextualidade) remetem para um passado, debicam nos cadáveres apodrecidos de antigos movimentos artísticos e teóricos. Há interesse neste estado de coisas? Como não, escrever num blogue este tipo de reflexão compromete o meu desprendimento. Não digo nada de novo. Mas não sou diferente de grande parte dos meus contemporâneos. Pós-moderno. Como um verso de Rui Reininho. Triste sina.

[Sérgio Lavos]

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