29/06/07

Dia Hard 4.0

Os redutos da masculinidade já foram mais escassos do que agora, apesar de ser moda afirmar o contrário. Quanto mais forte é a revolução, mais possibilidade existe de haver uma reacção. O resultado deste equilíbrio de forças usualmente chama-se progresso.
Chega do elogio do metrosexual. Quem quer ser um David Beckham quando a maior parte das mulheres afirma preferir um Dr. House, exibindo uma amargura cinicamente macha a toda a prova? Talvez existam exemplares do sexo feminino que não trabalhem em supermercados ou cabeleireiros que gostem de Beckham, mas uma coisa é a cabeça a falar - o elogio da sensibilidade, do gosto mais que requintado por um bom creme de beleza, da companhia em dia de saldos - outra são os genes; e nenhuma vontade feminista resiste à pulsão de um bom modelo de homem. Entre Beckham e as feromonas, mostrem-me a mulher que escolha o modelo efeminado que Beckham representa - a não ser, é claro, que falemos dos seus atributos financeiros. Mas será que o dinheiro ainda é o mais forte afrodisíaco?
Vem isto a propósito de "Die Hard 4.0", bela série B que pegou numa receita equilibrada de músculo testosterônico e derissão pós-moderna para retomar a personagem do polícia duro de morrer John McClane (Bruce Willis), conhecido por aparecer sempre no sítio errado à hora errada. Clichés à parte (e há bastantes, mesmo que embalados num jogo de citações esperto que apenas valoriza o filme), é sempre bom receber uma descarga de adrenalina via ecrã de cinema. Queremos personagens? Não, de maneira nenhuma. Basta a história, esgrimida com o talento suficiente para que um realizador médio não complique e borre a pintura. Aliás, muito longe disso; Len Wiseman consegue aqui e ali uma destreza técnica que lhe fica bem e não desmerece a série herdada do excelente John McTiernan. Um ritmo imparável, planos originais e uma montagem competente servem para passar uma mensagem - o tema do dia continua a ser a ameaça terrorista e a herança do pós-11 de Setembro. É verdade que a mensagem é reaça (como reparou Pedro Mexia) mas também é verdade, como afirma Luís Miguel Oliveira no artigo para o Ipsilon, que o herói clássico do cinema americano sempre o foi. Desde a perseguição de John Wayne aos índios em "The Searchers" até Bruce Willis defendendo a América de uma ameaça esquerdista, os exemplos multiplicam-se. Mas sempre com desprendimento e amargura - com todo o estilo do mundo. No fundo, sabemos que o herói reaccionário do cinema americano representa a alma de um povo. A impotência perante o perigo desconhecido. No tempo do velho Oeste, o homem de fronteira conquistava território para o homem branco e defendia-o dos antigos ocupantes. Nos dias de hoje, o cenário torna-se urbano, mas a ameaça é a mesma. Sempre o território a defender; o mito do "frontier man" não esmoreceu, em tempos de terrorismo mediático.
E os heróis estão aí, no ecrã, personagens de ficção que sobrevivem a tudo com um sorriso nos lábios e uma frase jaculatória de vingança, piada libertadora da tensão acumulada, mesmo antes da morte do vilão: "Make my day, punk!"; "Hasta la vista, baby!" "Yippee Ki Yay Motherfucka!" Saímos da sala mais descansados.

[Sérgio Lavos]

Videografias 12



Panda Bear, aka Noah Lennox dos Animal Collective, é um lisboeta adoptivo no genuflexório (objecto de uso religioso pedido de empréstimo a Emma Bovary) de Brian Wilson. A solo, com Person Pitch.


[Susana Viegas]

26/06/07

Days of Heaven (2)

Days of Heaven é um filme tão belo como o descrevem. De 1978, nomeado para 4 Oscares, e com a fotografia da responsabilidade de Nestor Almendros e banda sonora de Ennio Morricone, Days of Heaven é um daqueles filmes onde a palavra "metafísico" não nos sai do espírito. (Recentemente, Sokurov enveredou por esta linha estética filmando personagens e ambientes como se pintasse fotogramas de forma expressionista.)

Filmado em 70mm, tem a marca da mestria de Terrence Malick, realizador texano que apenas realizou 4 filmes em 30 anos. Formado em Filosofia (e foi professor no M.I.T.), Terrence Malick foi aluno de Stanley Cavell (filósofo do cinema autor de The World Viewed) e tradutor de Heidegger, filósofos que acabaram por marcar a sua visão do mundo. No entanto, e após o sucesso que foi Days of Heaven, Malick retirou-se e durante 20 anos não deu notícias até que, em 1998, apareceu com o inesquecível narrador de The Thin Red Line, James Caviezel. (Aliás, a voz off é um elemento importante nos filmes de Malick, sugerindo uma base argumentativa e dando uma consistência às próprias imagens, por vezes bastante abstractas.)

O lado filosófico e o bíblico entram em harmonia para servirem os objectivos de Malick: filmar cada ser humano na sua diferença e no seu carácter único e irrepetível. Nem bom, nem mau, só humano, demasiado humano. O lado profético é uma constância: desde a praga de gafanhotos ao incêndio destruidor, passando pela fragilidade do homem, mortal, com as suas invejas, cobiça, adultério e assassínio. Tudo isto é vivido de forma intensa por Richard Gere (Bill), operário de uma fábrica e obrigado a fugir da cidade por um crime que cometeu, segue num comboio a vapor para o campo acompanhado da irmã, Linda Manz, e Brooke Adams (Abby) acabando por trabalhar para Sam Shepard (the Farmer). A perfeição na captação da imagem é inacreditável, todos os movimentos no campo de trigo, o vento a bater na água do lago, juntamente com a cor, onde o dourado natural do sol e do trigo predomina (conseguido com filmagens ao nascer do sol e ao entardecer), formam um conjunto final que não deixa de surpreender.

Se há uma vontade maior de ver filmes, sempre mais e mais filmes, de uma forma compulsiva, deve ser porque se esperam momentos destes, momentos que perduram na memória como boas lembranças da infância. Este filme é capaz de preencher todos os desejos da cinefilia, todos os encantos que se procuram. Cria uma sensação que permanece para lá do crepúsculo das imagens.

Linda: "He [the Farmer] knew he was gonna die. He knew there was nothing there could be done. You're only on this Earth once. And, to my opinion, as long as you're around, we should have it nice."

[Susana Viegas]

Days of Heaven

Christina's World (1948), do pintor realista americano Andrew Newell Wyeth (n.1917), uma influência directa para Terrence Malick em Days of Heaven (1978), marcando a compreensão do contraste entre a vastidão dos campos cultivados, da obra do homem, e a solidão e isolamento da figura humana.

[Susana Viegas]

25/06/07

Verdade e consequência

Quem entra no auto-retrato em busca de hipocrisia que toma conta do mundo arrisca-se a sair pela porta dos fundos. Não há qualquer vontade de afastar o visitante brasileiro que aqui caiu. Espere, não vá embora. Fique um pouco. Falo de hipocrisia num ou noutro texto, é verdade. Entretanto curei a maldição - ficar de olhos raiados atrai sempre a espécie errada de deus. Não me interessam os hipócritas; na realidade, até que vagamente me atraem. Qualquer mentiroso compulsivo - e um hipócrita não passa disso mesmo - merece mais do que a minha atenção; a minha devoção. É difícil passear no labirinto da mentira; o minotauro espreita a cada esquina, a maldita verdade que estraga qualquer boa história. Neste ponto, afirmo: interessam-me os hipócritas até ao ponto em que não são apanhados a mentir. Quando são descobertos, deixa de ter interesse (e neste aspecto o erotismo assemelha-se à mentira). Um hipócrita é alguém que vive em constante humilhação, sorrindo para a pessoa que odeia, murmurando entredentes ressentimento e amargura, passeando em público a impotência de não chegar a ser um mitómano. O delírio em que este último vive é um problema de negação para o hipócrita - este julga ser racional, e portanto um ser em pleno auge social. Por vezes chegam longe - ou, como último recurso, tornam-se políticos. Mas carregam atrás de si pesadas grilhetas: sentir que nenhuma humilhação se compara à incapacidade de confessarem a verdade a si próprios. Imaginem: um hipócrita não aguentando o teatro em frente ao espelho; a encenação. No momento em que tudo é permitido, a mentira.
O escritor, esse, contraria a cada palavra a sua vocação de mitómano: quando quer mentir, diz a verdade mais límpida. O que vai tomar conta do mundo? Não espere nenhuma verdade neste texto, leitor. Muito menos hipocrisia.

[Sérgio Lavos]

Segundo nível

Perdoem-me a sinceridade: excedo-me nas contradições. Enquanto juro por todos os anjos de Rilke que é mentira que deva alguma coisa à verdade, coloco uma etiqueta no texto que diz: diário. Não me procurem aqui. Isto é apenas um ecrã de computador reflectindo (reparem bem) o vosso próprio rosto. Chega de interactividade?

[Sérgio Lavos]

Questão de semântica

Não é inédito. Talvez seja comigo. Perguntam-me se está tudo bem, e eu digo que sim. Dizem-me que o que escrevo indicia o contrário. Desistam. De procurar aqui qualquer sucedâneo de realidade. Sacrifiquei a verdade no altar da linguagem há muito. Procuro o estilo - ou a falta dele. Não há verdade na literatura. Muito menos num blogue - que não chega a ser literatura. Mas eu compreendo. Leio blogues intimistas e chego a acreditar que a pessoa que escreve existe mesmo. Ficcionistas da melhor colheita. Recriar um "eu" não é fácil. Quem o consegue fazer através de palavras merece o melhor de dois infernos: o do difícil confronto com o verdadeiro "eu" e o inferno do bloqueio de escritor. O que me deixa a pensar: o blogger intimista que interrompe a escrita, tira umas férias da vida? Quem precisa mais da verdade, o blogue ou a vida?

[Sérgio Lavos]

Cuidar dos vivos

Nenhum deus sustém a realidade. No ângulo cego de um espelho, ela diariamente nos confronta. Cuidamos dos vivos, mas apenas os mortos nos procuram.

[Sérgio Lavos]

21/06/07

O caminho

Não consigo compreender por que razão a voz dos anti-proibicionistas é tão pouco ouvida em sociedades ditas democráticas. Devia se levantar este mundo e o outro contra leis que visam, no limite, impor uma moral dentro de quatro portas. Alguém achava o contrário? Que mais cedo ou mais tarde se iria começar a proibir uma actividade estritamente privada, como fumar? Ninguém pode fingir ingenuidade. Qualquer cruzada moral conduz inevitavelmente a este tipo de fim. Deixem os moralistas tratar do assunto do tabaco, e é vê-los de seguida arranjar outras bandeiras: álcool, comida que não seja considerada saudável (seja o que isto for), sexo. E por aí fora. Nenhuma razão explica a obsessão. Apenas a pura irracionalidade. Mas nenhuma moral consegue erradicar a morte e a doença. O que qualquer moralista, de resto, também acaba por descobrir.

(Via Francisco José Viegas, a notícia de que falo é esta)

[Sérgio Lavos]

Linhas para um velho

O tigre no seu covil
Não é mais irritável do que eu.
A cauda chicote não está mais quieta
Do que quando eu farejo o inimigo
A contorcer-se no sangue essencial
Ou balançando-se da segura árvore.
Quando revelo os dentes do escárnio
O sibilar da língua bífida
É mais caloroso que o ódio,
Mais amargo que o amor que se tem à juventude -
E inacessível aos jovens.
Reflectido no meu olho dourado,
o velho do restelo torna-se um louco.

Digam-me se não devo rejubilar!

T. S. Eliot

versão de

[Sérgio Lavos]

Fora de jogo

Teríamos que agradecer a José Eduardo Agualusa a possibilidade de juntar na mesma frase Nuno Gomes e Clara Ferreira Alves, que nem na métrica shakespeareana à moda de Graça Moura teriam maneira de rimar. Uma vénia à cerveja Cuca vista por um canudo.

[Sérgio Lavos]

11ª lei da blogosfera

Desde que linkei este blogue, deixei de visitar este. É favor um dos dois mudar o template. Obrigado.

[Sérgio Lavos]

20/06/07

À noite

E. Mais um quadro de que preferia não falar. Eu agora estou sentado; olho para ele. Decorei a casa como quem prepara o coração para um tempo de insuportável sofrimento. Cada pintura aguarda o seu momento; esperam, conspiram enquanto durmo. Eu preparei-as para isso. Não me obrigues a falar desse quadro, em particular. Esse não. Pousa as mãos sobre as teclas. Vou fumar um cigarro. Estou cansado, a noite cobriu-se de nuvens, talvez vá fechar a janela. Eu estou a ver o quadro. Não te respondo. Decorei o quadro. Sei-o de cor. A porta do quarto espera. Quem sairá primeiro?

[Sérgio Lavos]

Poker

O melhor de tudo é colocar as cartas na mesa. Baixar os braços. Abandonar, sorrindo, o jogo. Não recear a porta que ao fundo se abre para quem perde. E, à saída, lançar uma última mirada à mulher mais bela da sala.

[Sérgio Lavos]

Sintaxe

Gostaria de poder emendar um texto antigo sobre a arte de errar e voltar a errar; e nunca emendar. Nada de Beckett, nada. Falhar uma vez é um risco. Nunca acertar é um destino cumprido. Seria tão mais fácil aceitar algumas consequências se fosse tão árduo mudar a vida como é um texto. Desacertar palavras. Reconhecer a impossibilidade de sentido. A ordem do mundo impele o discurso para o sentido pleno. Impede a desordem do discurso. Jogos de palavras com a morte em fundo.

[Sérgio Lavos]

17/06/07

David Fincher

Apenas tinha visto "Se7en", de David Fincher, uma vez. A oportunidade de rever a obra surge na altura exacta, enquanto "Zodiac" ainda está em cartaz. Talvez nunca tenha voltado a "Se7en" por razões que têm menos que ver com o esquema narrativo do filme, suportado pela reviravolta final (depois tornou-se moda), do que com o impacto do tema tratado. Ou da maneira como o tema foi tratado. A verdade é que o filme resistiu ao tempo e à força do argumento. A principal razão é o mérito de Fincher, a qualidade de autor que o define como um dos melhores realizadores americanos da actualidade.
Há um modo fincheriano de fazer as coisas. Não irei falar em obsessão, paranóia ou esquizofrenia, porque o conteúdo não me interessa, sim a forma. Ou, de outra maneira, a forma como expressão de uma visão do mundo. A câmara de Fincher é tensa, passeia-se pelas personagens tentando captar-lhes as fragilidades - como um psicopata. Em "Se7en", uma dança é ensaiada, entre o caos dos quartos onde aparecem as vítimas (as sombras atravessadas pela luz, os objectos fetichistas, a encenação dos corpos e da carne) e a desordem da casa e da esquadra onde os dois agentes trabalham. Repare-se que não há uma verdadeira ordem no mundo em que as personagens existem. Os diálogos reforçam a ideia - a cidade é uma permanente ameaça, Jonathan Doe surge como redentor de todo o sofrimento, anjo purificador da maldade humana. Mas, mais do que os diálogos, o que evidencia esta impossibilidade de fuga é o trabalho de encenação do espaço físico do filme. A casa do detective Mills (Brad Pitt) ainda não existe enquanto lar para a família. Os lençóis cobrem os móveis, a mulher sente-se inadaptada, nenhuma ordem governa a vida da personagem. Já no caso do detective Sommerset (Morgan Freeman), não conhecemos a casa, sentimo-lo como um solitário que é procurado pela mulher de Mills para servir de ombro consolador. Em "Zodiac", existe uma semelhança de processos: Robert Graysmith (Jack Gyllenhaal) é um tipo estranho que, mesmo quando se casa, não deixa de afastar as pessoas que ama. A casa onde ele habita é tão sombria como a caravana onde o possível assassino vive. De igual modo, respira-se na casa do polícia (Mark Rufallo) que investiga as mortes do assassino do Zodiac uma frieza que anuncia uma progressiva distância entre o polícia e a mulher, personagem que praticamente não tem falas no filme. Quase se pode afirmar que é tão elevado o grau de sociopatia nos heróis dos filmes como o é nos vilões. Não há estereótipos, para Fincher. Apenas almas humanas, ou irremediavelmente perdidas ou em busca de um sentido para a perdição, para o caos em que se vêem envolvidas. A todos estes temas serve na perfeição o jogo da crueldade (melancólica) resgatado aos quadros de Francis Bacon. As personagens enclausuradas do pintor, as coreografias grotescas, tanto se repetem nos mortos de "Se7en" como nos vivos que passam pelo filme. As posições em que as vítimas do assassino em série aparecem são óbvia referência a Bacon - um movimento inerte que transcende a morte e se fixa como obra-de-arte. John Doe, em "Se7en", mais do que deixar uma marca ética de posicionamento contra a decadência do mundo, pretende limpá-lo das impurezas que o poluem. A acção do assassino é exclusivamente de ordem estética (já Thomas de Quincey o dizia); a ética é uma desculpa - mais facilmente se perdoa a loucura a um moralista do que a um esteta. Em "Zodiac", Fincher retrocede no caminho - e descobrimos que é difícil encontrar beleza no mundo de um moralista. O assassino revela-se.

[Sérgio Lavos]

13/06/07

Al Berto

Conheci Al Berto num sonho. Actores moviam-se num palco improvisado, a dois passos do lugar onde estava sentado, e não eram actores, eram personagens do Lunário, e não eram também personagens, eram Alberto e os amigos, amantes, e não eram homens e mulheres, eram corpos em movimento, esboços no papel e sombras na memória, não eram nada, apenas luz e um resto de rio parado.
Há um momento na vida em que o lirismo pop de Al Berto faz sentido. Passei por esse momento, como muitos que o admiram (ou admiraram) como o fazem a uma estrela de rock. Não era a marginalidade, o risco. Nem sequer a aura romântica, como um Rimbaud recente ou um Allen Ginsberg doméstico. Era o corpo que aparecia plasmado na poesia que escrevia. De algum modo, olhava para a fotografia do poeta roubada por Paulo Nozolino a Caravaggio para a capa d'O Medo (naquela edição da Contexto) e via mais que um homem escrevendo - uma simulação de anjo. E a adolescência é propícia a estes encontros com anjos. Entretanto, fui ficando mais velho. E cínico. Deixei de gostar como gostava de Al Berto. Encontrei-lhe uma ou outra fraqueza, mas sobretudo descobri nele uma sinceridade no dizer que já não consigo admirar nos poetas. O problema é meu, portanto.
Al Berto morreu num dia 13 de Junho, há dez anos. São tantos os textos que escrevi sobre ele (poemas, dedicatórias, contos com personagens inspiradas nele) que se torna injustificada a minha distância em relação à sua poesia. Entre a vontade de sobreviver numa vida que se afasta cada vez mais rápido do sonho em que encontrei Al Berto e a necessidade de regressar de vez em quando a esse sonho, vou jogando a minha relação com o poeta; que é, em simultâneo, uma dança com o meu passado - esse que não cessa de resistir em cada verso d'O Medo.

[Sérgio Lavos]

08/06/07

Uma traição

Escasseia o tempo para derivações literárias. Limito-me a pegar em novelas de autores com poucas ambições e raro entendimento da eficácia da escrita. No outro dia, acabei de ler um ensaio escrito em 1943 por um autor sérvio menos conhecido do que deveria ser. A tradução inglesa, editada pela Bloomsbury Press, levou o título de "A Silence Less Spoken Than Often", o que me parece de uma irrepreensibilidade exemplar. Apetece-me colocar aqui o nome do tradutor: Susan Margolies-Simic; ao ler um livro traduzido para uma língua que não a mãe, arrisca-se sempre bastante. Pensar na longa cadeia que o texto percorreu até chegar às nossas mãos pode ser perturbante. As hipóteses de recebermos o pensamento original do autor são curtas. "Não se traduzem quadros, nem música." A desvantagem da literatura em relação às outras artes é limitadora. Mas há ganhos; cada traidor que tenha a sorte de tocar nas palavras do autor pode adicionar um pouco de si próprio. Susan Margolies-Simic a custo consegue disfarçar as suas pretensões literárias. A geometria rítmica da tradução da inglesa denuncia mais que amor ao autor sérvio. Imagino nas palavras uma reminiscência longínqua, um som circular a sumir-se na sintaxe inglesa. A distância entre a Sérvia e a Inglaterra é maior do que a geografia mostra. Há duas línguas, dois alfabetos, uma tradição literária a separá-las. A única réstia de salvação para esta traição mais que perfeita é o hífen ligando os dois apelidos da inglesa. Não pode haver qualquer dúvida: o que une as duas línguas é o amor. A traição assim, apenas pode ser perdoada.

[Sérgio Lavos]

04/06/07

Arte e imanência (3)


engraçado que tenha enveredado por tal exercício de hermenêutica. Engraçado. Eu próprio já fui tentado a fazê-lo, como pós-modernista que sou. (Também gostaria de ser um dos pós-modernos, mas aí pareceria que era verso de uma letra do Rui Reininho, e há coisas que eu não posso tolerar).
Ora, não é necessário ser tão paciente (ou insone) para perceber contradições no meu discurso. A verdade, cara Miss Allen (mas eu julgo que já tinha percebido isso) é que ando perdido. Eu sou de agora, claro, nasci depois do 25 de Abril, sou filho da evolução. Mas antes de mim, já muita gente andava perdida há, pelo menos, trinta anos. E não era só aqui, no mundo inteiro. O problema da nossa época (além da excessiva crença no fatalismo do fim da fé) é não saber em que prateleira arrumar o tempo que vivemos. Mas, imagino eu, terá sido sempre assim. "Narrativa exageradamente classificatória"? Será, mas precisamente porque os historiadores e os críticos de agora não têm a vida facilitada. Todos se colocam de fora do círculo. Ninguém quer ser pós-moderno. Tempos houve em que meia-dúzia de génios loucos se juntavam a meia-dúzia de loucos que se julgavam génios e formavam um grupo. Reuniam-se com intenções de, no mínimo, mudar o mundo - quase sempre apenas conseguiam mudar as suas próprias vidas. Os "ismos" saltavam-lhes da boca para fora como pipocas. Todos os conhecem. Mas cada historiador de arte tem o fardo que merece. Os actuais resignam-se ao terror de terem que viver com a desterritorialização de toda a arte. Cada artista é uma ilha. E os arquipélagos há muito entraram numa oportuna deriva. O mais interessante é que todo o pensamento pós-moderno teoriza sobre seu próprio fim. Ou, num sentido mais lato, sobre o fim do pensamento. De Jean Baudrillard a Slavoj Zizek, os fins vão-se repetindo numa infinita cadeia. Ter medo de "perder o pé" faz parte desta maneira de pertencer ao tempo presente.
E o tempo, lá está, fugiu-nos de debaixo dos pés. Não foi preciso nenhum Einstein para provar isto. O regresso a um tempo mirífico que Nietzsche perseguiu durante toda a vida contemplava não só um movimento em direcção a um tempo que passou (o tempo dos antigos), mas também um movimento em direcção a um futuro provável. A actualização desse tempo não foi possível. Mas serviu de prenúncio para o século em que o tempo deixou de fazer sentido. Um mundo sem Deus é um mundo que corre fora do eixo do tempo. Não se trata aqui de "desacreditar o tempo". Já houve alguém que fez esse trabalho sujo. Nos últimos cem anos, nenhuma teoria conseguiu inverter o curso da História - regressamos a uma era que nunca existiu, a era de Dioniso - mas apenas porque alguém falou disso em tempos. As palavras produzem o tempo - "e a luz fez-se". "Precisamos da tabela cronológica"? Apenas porque não temos mais nada a que nos agarrar.
Mas falávamos de arte. Julgo que as minhas contradicções não são apenas um exercício de estilo (mas já nem sei até que ponto é que eu acredito nisto). Se reparar, quando eu escrevo que "o passado já não interessa" não quero afirmar que o artista não se interessa por quem o antecedeu. Não vou citar, mas insisto neste ponto: o que mais interessa ao artista é matar o pai, para poder criar a partir daí a sua obra, livre do peso da hierarquia. Criar é um exercício de liberdade, sempre absoluto. A "angústia da influência" é o cordão umbilical que, enquanto não é cortado, estrangula a critividade necessária para a produção de novidade, diferença. O "reconhecimento do passado" é operativo. A obra-de-arte é reacção e apenas se torna decisiva quando deixa de ser repetição e passa a ser diferença (Deleuze disse-o em vários livros). Ora, não existe nenhum catastrofismo nesta ideia de esquecer o tempo que passou. Vivemos fora do eixo do tempo (um suave exercício de loucura controlada) e por isso podemo-nos dar o luxo de deitar fora tudo o que evitamos repetir. O problema é que já não existem vanguardas. Quase tudo é repetição, emulação dos mestres. Todas as características associadas ao pós-modernismo (a paródia, a auto-citação, o pastiche, a intertextualidade) remetem para um passado, debicam nos cadáveres apodrecidos de antigos movimentos artísticos e teóricos. Há interesse neste estado de coisas? Como não, escrever num blogue este tipo de reflexão compromete o meu desprendimento. Não digo nada de novo. Mas não sou diferente de grande parte dos meus contemporâneos. Pós-moderno. Como um verso de Rui Reininho. Triste sina.

[Sérgio Lavos]

Arctic Monkeys

Não sei se é pose ou ingenuidade, uma imagem ou a verdade, a ideia que os Arctic Monkeys transmitem nas entrevistas, de que mal conhecem a música pop dos anos 90 para trás. Não sei, mas ambas as hipóteses são interessantes; produzir um som que em tudo se assemelha ao de bandas de há 15 ou 20 anos (The Jam, Wire, Clash) sem disso terem a mínima noção; ou, pelo contrário, conhecerem muito bem os clássicos (se Italo Calvino tivesse escrito um livro sobre a música pop, como descreveria um clássico?) e ainda assim fazerem tábua rasa do conhecimento e proclamar, alto e bom som, que nunca ouviram os... sei lá, Specials ou qualquer outra banda da época. Mas falam em Strokes, falam, e estes não se envergonham das suas raízes longínquas (tardes e tardes e tardes entre Lou Reed e Clash, Television e AC/DC). A lenda que se repete a propósito dos Velvet Underground (das 100 pessoas que os ouviram, 99 começaram uma banda) bem que se pode aplicar à banda nova-iorquina. As cópias abundam, as réplicas ameaçam tomar conta do mundo (pop). Mas os Arctic Monkeys têm muito a seu favor. Quem se lembraria de tocar guitarra como Albert Hammond Jr. a acompanhar letras retiradas do cancioneiro dos The Streets? Ou, já agora, de ter sido contaminado na primeira infância pelo vírus dos Blur, aquele que se começou a propagar a partir dos anos 60, com os Kinks? Há um som Arctic Monkeys? Original, diferente do resto? Ou é apenas propaganda? Que verdade pode haver naquele sotaque de adolescente da working class (nunca um lad alcoolizado, nunca) cantando as pequenas frustrações e misérias do quotidiano na cidade? Serão apenas as guitarras e a sobredose dos... Queens of the Stone Age, imagine-se?
Não interessa. Têm feeling. E isso é tudo.

(O texto longo é só para falar da musiquinha que está ali a tocar ao lado. Exagero estilístico, é bom de ver.)


[Sérgio Lavos]

01/06/07

Videografias 10




O melhor vídeo de Maio foi sem dúvida The lakes of Canada de Sufjan Stevens, com muito vento, frio e um banjo. Gravado no telhado do Memorial Hall de Cincinnati a 28 de Maio, insere-se numa série de gravações improvisadas de lablogotheque, na rua, em corredores ou elevadores, porque qualquer sítio é um bom sítio para filmar. Sobre o realizador, Vincent Moon, pouco consegui saber: pelo Myspace sabemos que tem 27 anos, é parisiense e consegue encontros com quase todos os artistas. [O Sérgio, por exemplo, escolheu a entrada dos Arcade Fire no concerto do Olympia de Paris.]

The lakes of Canada é uma versão dos The Innocent Mission oriundos da Pennsylvania, que aparece no álbum Birds Of My Neighborhood (1999), cantada na sereníssima voz de Karen Peris. Parecia ser impossível melhorá-la mas com a voz de Sufjan tudo é possível. Nas palavras dele, "a small song that makes careful observations about everyday life."

( The Innocent Mission têm novo álbum em 2007 mas o que recomendo é Now the day is over, acolhedoras e relaxantes músicas de embalar bébés.)

[Susana Viegas]