07/01/07

Ética do contexto (2)

Não li, até agora, nenhum texto que questionasse seriamente as opções tomadas pela maior parte das estações de televisão do mundo ocidental, ao decidirem mostrar as imagens, captadas por um telemóvel, da execução de Saddam Hussein.

Apesar de haver notícias de terem sido presos dois guardas que estavam presentes, suspeitos de terem filmado o acto, ninguém de boa fé poderá achar que a gravação não foi permitida, se não mesmo incentivada, pelas autoridades iraquianas. A cortina de fumo da detenção dos guardas não desmente a verdade do acontecimento: a encenação do enforcamento serviu apenas para humilhar os sunitas. A imagem é o motor de afirmação do novo poder no Iraque; o governo xiita imita, a uma escala mediática global, o acto simbólico que foi mostrar o corpo de Mussolini e de sua amante, fuzilados numa praça de Milão e ao longo de vários dias expostos à execração pública. Cada tempo tem a sua forma particular de linchamento.

As imagens existiam, o governo iraquiano tinha todo o interesse em transmiti-las em território nacional, interesse que se estendia ao resto do mundo muçulmano, as forças ocupantes também – sem hipocrisia, ou será que não existe um fio narrativo que liga a captação das imagens de Saddam a sair de um buraco e o acto final, do ex-ditador com a corda ao pescoço, enfrentando os algozes de rosto descoberto?

Depois da morte de três crianças em consequência da exibição das imagens, tem-se evitado colocar em causa a independência de quem decidiu que a matéria tratada – a morte de um ser humano, recorde-se – teria importância noticiosa suficiente para não ser objecto do pudor que em outras alturas foi visível. Recorde-se a censura pública do governo americano aos media árabes quando mostraram os cadáveres de soldados americanos a serem arrastados e queimados em Tikrit, e isto foi apenas um exemplo. Em Portugal, apenas a SIC se absteve de mostrar o momento anterior à execução, e tanto a RTP como a TVI pararam antes de surgir a gravação não-oficial, que mais tarde acabou por circular pela Internet. De qualquer modo, todos os canais portugueses já passaram, disfarçados em reportagens sobre as reacções à morte de Saddam, breves segundos da versão oficiosa, com os insultos e o momento da morte incluídos, sem qualquer aviso prévio nem explicações da mudança de critério.

Do que tenho lido, destaca-se o nojo de muitos comentadores perante a humanidade exposta de Saddam. Eu também preferia, confesso, que ele tivesse continuado a ser apenas um monstro semelhante àqueles que assombram os nossos pesadelos de criança. Ficaria menos perplexo se me tivesse sido ocultada a pornografia barata dos executores do ditador. Entre os dois níveis de repulsa – o que recusa em qualquer situação a pena de morte e aquele que apenas sente aviltamento quando exposto ao lado sombrio da personalidade humana – balançam as opiniões da maior parte dos europeus – dos americanos, não vale a pena falar, conhecendo nós o apoio que tal medida punitiva continua a ter na opinião pública local. Mas, e será esta a questão verdadeiramente importante, até que ponto o nojo é sentido? Onde pára a imaginação humana? No ponto em que as câmaras de telemóvel não conseguem captar a morte de um Homem?

[Sérgio Lavos]

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